A ética aristotélica

Aristóteles foi o primeiro pensador a insistir que a busca pelo conhecimento deveria ser dividida em diferentes áreas determinadas pelo foco da questão. Assim, por exemplo, distinguiu entre a filosofia da natureza, que seria o chamamos atualmente “ciência”, e metafísica, que seria o que atualmente chamamos “filosofia”. Foi também o primeiro filósofo a insistir na importância da investigação sistemática experimental e na coleta de dados, assim proporcionando um impulso no desenvolvimento do método científico.

O interesse de Aristóteles no mundo material indicava que sua abordagem filosófica era diferente da platônica. Em contraste com Platão, que defendia que nosso mundo cotidiano da experiência é mera cópia imperfeita do reino das Ideias perfeitas, Aristóteles acreditava que a realidade última das coisas reside nos objetos físicos – que podem ser conhecidos pela observação. Assim, levou a cabo estudos biológicos extensos, examinando mais de quinhentas espécies de animais.

Talvez por causa de seu interesse no mundo dos seres vivos, Aristóteles pensava que era possível explicar a existência de todas as coisas em termos de suas funções; isto é, em termos do papel que exercem ao perseguir uma finalidade.

Essa ideia geral aplica-se também a seu pensamento sobre a ética. Uma coisa é virtuosa na medida em que realiza seu potencial latente. Assim, os seres humanos atingem a excelência se agem de acordo com os ditames da razão; a prática da vida virtuosa de acordo com a razão conduz à felicidade.

Um aspecto importante da teoria ética de Aristóteles é a sua famosa doutrina da justa medida, ou do meio-termo.

Segundo essa doutrina, os seres humanos agem bem se evitam os extremos nas respostas que dão às situações que os confrontam. Uma ação justa é a que não peca por deficiência nem por excesso; é uma ação que procura um caminho intermediário.

Por exemplo, a virtude da coragem encontra-se entre a covardia (deficiência) e a temeridade (excesso).

Assim como a saúde do corpo é determinada pelo equilíbrio fisiológico de seus componentes, a virtude consiste na disposição em escolher o justo meio. Essa capacidade, que se adquire e se desenvolve pelo exercício, exclui sistematicamente os contrapostos vícios do excesso e da escassez, realizando uma mediação sobre o controle da razão.

Não há uma fórmula para determinar precisamente quais ações são corretas em uma ocasião particular qualquer; sua definição é questão de avaliar cuidadosamente as respostas apropriadas à luz das circunstâncias particulares.

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles, e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos. Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que acabamos de mencionar, a vida política e a contemplativa. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo.

A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado.

Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao menos, a virtude é mais excelente. Poder-se-ia mesmo supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modo incompleta, porque pode acontecer que seja virtuoso quem está dormindo, quem leva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com os maiores sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém jamais considerará feliz um homem que vive de tal maneira.

Quanto a isto, basta, pois o assunto tem sido suficientemente tratado mesmo nas discussões correntes. A terceira vida é a contemplativa, que examinaremos mais tarde.

Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa. E assim, antes deveriam ser incluídos entre os fins os que mencionamos acima, porquanto são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixemos, pois, este assunto. (…)

Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos.

Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.

Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série infinita.

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação.

Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o “bem feito” residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função.

Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela?

A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E, como a ”vida do elemento racional” também tem dois significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo.

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom tal-e-tal” têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa.

Mas é preciso ajuntar “numa vida completo”. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso. (…)

Também se ajusta à nossa concepção a dos que identificam a felicidade com a virtude em geral ou com alguma virtude particular, pois que à virtude pertence a atividade virtuosa. Mas há, talvez, uma diferença não pequena em colocarmos o sumo bem na posse ou no uso, no estado de ânimo ou no ato. Porque pode existir o estado de ânimo sem produzir nenhum bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos Jogos Olímpicos não são os mais belos e os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que competem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), também as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente.

Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude.

Ora, na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. Em conseqüência, a vida deles não necessita do prazer como uma espécie de encanto adventício, mas possui o prazer em si mesma. Pois que, além do que já dissemos, o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em agir com justiça, nem liberal o que não experimenta prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos.

Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos:

Das coisas a mais nobre é a mais justa, / e a melhor é a saúde;/ Mas a mais doce é alcançar o que / amamos.

Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ou então, uma delas — a melhor —, nós a identificamos com a felicidade.

E no entanto, como dissemos, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas ações utilizamos como instrumentos os amigos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuja ausência empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparência, ou mal-nascido, ou solitário e sem filhos, não tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos.

Como dissemos, pois, o homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude.

Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de adestramento, ou se ela nos é conferida por alguma providência divina, ou ainda pelo acaso. Ora, se alguma dádiva os homens recebem dos deuses, é razoável supor que a felicidade seja uma delas, e, dentre todas as coisas humanas, a que mais seguramente é uma dádiva divina, por ser a melhor.

Esta questão talvez caiba melhor em outro estudo; no entanto, mesmo que a felicidade não seja dada pelos deuses, mas, ao contrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie de aprendizagem ou adestramento, ela parece contar-se entre as coisas mais divinas; pois aquilo que constitui o prêmio e a finalidade da virtude se nos afigura o que de melhor existe no mundo, algo de divino e abençoado.

Dentro desta concepção, também deve ela ser partilhada por grande número de pessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la mediante uma certa espécie de estudo e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa maneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatos sejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, por natureza, tão bom quanto poderia ser, e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas.

Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito.

A resposta à pergunta que estamos fazendo é também evidente pela definição da felicidade, porquanto dissemos que ela é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentes como condições prévias da felicidade, e outros são naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos. E isto, como é de ver concorda com (…) que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações.

Ê natural, portanto, que não chamemos feliz nem ao boi, nem ao cavalo, nem a qualquer outro animal, visto que nenhum deles pode participar de tal atividade. Pelo mesmo motivo, um menino tampouco é feliz, pois que, devido à sua idade, ainda não é capaz de tais atos; e os meninos a quem chamamos felizes estão simplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que neles depositamos. Porque, como dissemos, há mister não só de uma virtude completa mas também de uma vida completa, já que muitas mudanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima de grandes infortúnios na velhice, como se conta de Príamo no Ciclo Troiano; e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ninguém chama feliz.

Então ninguém deverá ser considerado feliz enquanto viver, e será preciso ver o fim, como diz Sólon?

Mesmo que esposemos essa doutrina, dar-se-á o caso de que um homem seja feliz depois de morto? Ou não será perfeitamente absurda tal idéia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie de atividade? Mas, se não consideramos felizes os mortos e se Sólon não se refere a isso, mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar um homem de venturoso porque finalmente não mais o podem atingir males nem infortúnios, isso também fornece matéria para discussão. Efetivamente, acredita-se que para um morto existem males e bens, tanto quanto para os vivos que não têm consciência deles: por exemplo, as honras e desonras, as boas e más fortunas dos filhos e dos descendentes em geral.

E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenha vivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitos reveses podem suceder aos seus descendentes. Alguns serão bons e terão a vida que merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também é evidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podem variar indefinidamente. Seria estranho, pois, se os mortos devessem participar dessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado, também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse o menor efeito sobre a felicidade de seus ancestrais.

Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo exame mais atento talvez nos dê a solução do presente problema. Ora, se é preciso ver o fim para só então declarar um homem feliz, temos aí um paradoxo flagrante: quando ele é feliz, os atributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados dele devido às mudanças a que estão sujeitos, porque admitimos que a felicidade é algo de permanente e que não muda com facilidade, ao passo que cada indivíduo pode sofrer muitas voltas da roda da fortuna. É claro que, para acompanhar o passo de suas vicissitudes, deveríamos chamar o mesmo homem ora de feliz, ora de desgraçado, o que faria do homem feliz um “camaleão, sem base segura”. Ou será um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? O sucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas (…) a existência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o que constitui a felicidade ou o seu contrário são as atividades virtuosas ou viciosas.

A questão que acabamos de discutir confirma a nossa definição, pois nenhuma função humana desfruta de tanta permanência como as atividades virtuosas, que são consideradas mais duráveis do que o próprio conhecimento das ciências. E as mais valiosas dentre elas são mais duráveis, porque os homens felizes de bom grado e com muita constância lhes dedicam os dias de sua vida; e esta parece ser a razão pela qual sempre nos lembramos deles. O atributo em apreço pertencerá, pois, ao homem feliz, que o será durante a vida inteira; porque sempre, ou de preferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou na contemplação virtuosa, e suportará as vicissitudes da vida com a maior nobreza e decoro, se é “verdadeiramente bom” e “honesto acima de toda censura”.

Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto à importância. É claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes não pesam muito na balança, mas uma multidão de grandes acontecimentos, se nos forem favoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em si mesmos, de feitio a aumentar a beleza da vida, mas a própria maneira como um homem os recebe pode ser nobre e boa); e, se se voltarem contra nós, poderão esmagar e mutilar a felicidade, pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas atividades. Todavia, mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por nobreza e grandeza de alma.

Se as atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis. Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade, pensamos nós, todas as contingências da vida, e sempre tira o maior proveito das circunstâncias, como um general que faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calçados com o couro que lhe dão; e do mesmo modo com todos os outros artífices. E, se assim é, o homem feliz nunca pode tornar-se desgraçado, muito embora não alcance a beatitude se tiver uma fortuna semelhante à de Príamo.

E tampouco será ele versátil e mutável, pois nem se deixará desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns, mas somente por muitas e grandes; nem, se sofreu muitas e grandes desventuras, recuperará em breve tempo a sua felicidade. Se a recuperar, será num tempo longo e completo, em que houver alcançado muitos e esplêndidos sucessos.

Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtude perfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante um período qualquer, mas através de uma vida completa? Ou devemos acrescentar: “E que está destinado a viver assim e a morrer de modo consentâneo com a sua vida”? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade, afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim, chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essas condições se realizem ou estejam destinadas a realizar-se — mas homens felizes. Sobre estas questões dissemos o suficiente.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

 

TEXTO 2

 

Antes de tudo, devemos notar que as ações estão sujeitas a se tornar imperfeitas ou por escassez ou por excesso (para recorrermos a testemunhos evidentes acerca de questões obscuras), como podemos ver a propósito da força e da saúde: de fato, tanto os excessivos quanto os escassos exercícios físicos prejudicam a força, assim como o beber e o comer quando superabundantes ou insuficientes estragam a saúde, ao passo que a justa proporção a produz, aumenta e preserva.

O mesmo acontece com a moderação, a coragem e as outras virtudes. De fato, quem evita e teme qualquer coisa e nada enfrenta torna-se tímido; quem, ao contrário, não teme absolutamente nada, mas enfrenta qualquer coisa, torna-se temerário. Do mesmo modo, quem goza de todo tipo de prazer e não se abstém de nenhum se torna intemperante; quem, no entanto, foge de todos, como os rústicos, torna-se insensível. Portanto, a moderação e a coragem são prejudicadas tanto pelo excesso quanto pela escassez, ao passo que são preservadas no caminho do meio.

A virtude é, portanto, uma ordenação de intenções, que consiste na mediação em relação a nós mesmos, definida pela razão e estabelecida como o faria o homem sábio. É uma mediação entre dois vícios: um por excesso, outro por escassez. E como alguns vícios são por escassez e outros são por excesso do que é devido, seja nas paixões, seja nas ações, a virtude encontra e escolhe a justa medida.

Portanto, segundo a sua essência e segundo a razão que estabelece a sua natureza, a virtude é uma mediação, mas em relação ao bem e à perfeição ela está no ponto mais elevado.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

O motor imóvel na metafísica aristotélica

Selecionei trechos do livro XII da Metafísica de Aristóteles. Esses trechos tratam do “primeiro motor”, o “motor imóvel”, que, de acordo com Aristóteles, é a causa primeira de todas as coisas que existem.

A tradução é de Lucas Angioni e pode ser encontrada aqui.

METAFÍSICA – LIVRO XII (trechos)

Alguém poderia indagar: de que tipo de não-ente procede o vir a ser? De fato, “não-ente” comporta três modos. Dado que há algo em potência, não procede de qualquer não-ente, mas, a partir de um não-ente distinto, é um ente distinto que vem a ser. Não é suficiente dizer “todas as coisas juntas”. Elas são diferentes pela matéria, pois por que haveriam de se tornar infinitas, mas não uma só? A Inteligência é uma só, de modo que, se também a matéria fosse uma só, surgiria efetivamente tal e tal coisa, que a matéria era em potência.

Portanto, são três as causas e três os princípios: a contrariedade são dois (dos quais um é a determinação e a forma, outro, a privação), e o terceiro é a matéria.

(…)

Dado que, no domínio das coisas naturais, aquilo que propicia movimento em relação a um ser humano é um ser humano, e, no domínio das coisas que se dão por pensamento, é a forma ou seu contrário, de certo modo as causas são três, mas, de outro, são quatro. De fato, a arte medicinal é, de certo modo, a saúde, a arte de construir é, de certo modo, a forma da casa, assim como um ser humano gera um ser humano.

Além dessas causas, há, ainda, aquilo que, sendo primeiro que tudo, move todas as coisas.

(…)

Dado que aquilo que é movido e propicia movimento é intermediário, há algo que propicia movimento sem ser movido, sendo uma essência e uma atividade eterna. Propiciam movimento desse modo aquilo que é desejável e aquilo que é suscetível de ser pensado: propiciam movimento sem serem movidos. As primeiras entre essas coisas são as mesmas. De fato, aquilo que aparece como belo é apetecível,mas o objeto do querer, primeiramente, é aquilo que é realmente belo. Desejamo-lo porque parece-nos ser belo, em vez de parecer ser belo porque desejamo-lo, pois, de fato, é o pensamento que é princípio.

(…)

Ora, se algo é movido, pode ser de outro modo; conseqüentemente, se sua atividade for a locomoção primeira, ele poderá ser de outro modo na exata medida em que sofre movimento – no lugar, ainda que não em sua essência. Mas, dado que há algo que propicia movimento sendo ele próprio não-suscetível de ser movido, e que está em atividade, não é possível, de modo algum, que tal coisa seja de outro modo. Ora, a locomoção é a primeira das mudanças, e é primeira a locomoção circular. É esta que tal coisa promove.

Portanto, tal coisa é necessariamente, e, na medida em que é necessariamente, é de modo belo, e é assim que ela é princípio. De fato, “necessário” se diz desses modos: por violência, porque é contra o impulso; aquilo sem o que não se dá o que é bom, e aquilo que não pode ser de outro modo, mas é de modo absoluto.
Portanto, é de um princípio desse tipo que depende o céu e a natureza. Sua fruição é como aquela que nos é a melhor, por pouco tempo (tal princípio é sempre desse modo, mas, para nós, isso é impossível), dado que sua atividade é prazer (por isso, o mais aprazível são vigília, percepção, pensamento, e, devido a tais coisas, as expectativas e as memórias).

(…)

Assim, pelo que foi dito, é evidente que há uma essência eterna, não-suscetível de movimento e separada das coisas sensíveis. Também está provado que não é possível que tal essência possua grandeza, pois ela é indivisível e desprovida de partes (de fato, ela propicia movimento por um tempo infinito, mas nenhuma coisa finita possui capacidade infinita; dado que qualquer grandeza ou é infinita ou finita, por isso, ela não poderia ter uma grandeza finita, nem uma grandeza infinita, porque,em geral, não há nenhuma grandeza infinita). Além disso, está provado que ela não é suscetível a modificações e alterações, pois todos os demais movimentos são posteriores ao movimento local. Assim, é evidente porque essas coisas são desse modo.

(…)

O princípio, isto é, o primeiro entre os entes, é não-suscetível de movimento, em si mesmo e por concomitância, e promove o movimento primeiro e eterno, que é único. Dado que, necessariamente, aquilo que é movido é movido por algo; dado que o primeiro motor é, em si mesmo, não-suscetível de movimento; dado que o movimento eterno é promovido por algo eterno, e um movimento único, por algo único; dado que, além da locomoção simples do Todo, a qual dizemos que a primeira essência não-suscetível de movimento promove, vemos que há outras locomoções eternas, a dos planetas (de fato, o corpo que se move em círculo é eterno e sem-repouso; provou-se isso nas discussões sobre a natureza), necessariamente, também cada uma dessas locomoções é movida por uma essência eterna que, em si mesma, é não-suscetível de movimento. De fato, a natureza dos astros é eterna, sendo uma essência, e o que os move é eterno e anterior ao que é movido, e necessariamente é essência aquilo que é anterior a uma essência. Assim, evidentemente, é necessário que exista a mesma quantidade de essências eternas em suas naturezas e, em si mesmas, não-suscetíveis de movimento e desprovidas de grandeza, pela causa antes mencionada.

(…)

Que o céu é um só, é evidente. De fato, se os céus fossem muitos, como os homens, o princípio de cada um seria um pela forma, mas, numericamente, seriam muitos. Mas tudo que é numericamente múltiplo possui matéria (de fato, há uma única e mesma definição para as coisas múltiplas, por exemplo, para ser humano, mas Sócrates é um só); no entanto, o que é primeiramente “aquilo que o ser é” não possui matéria, pois é efetividade. Portanto, o primeiro motor, sendo não-suscetível de movimento, é um só em definição e em número; também o é, portanto, aquilo que se move sempre continuamente: portanto, o céu é um só.

Física de Aristóteles: o lugar natural

FÍSICA, III

Todo corpo sensível está por natureza em algum lugar, e há um lugar próprio para cada corpo, o mesmo para o todo e para cada parte sua; por exemplo, o mesmo para toda a terra e para um pouco de terra, o mesmo para o fogo e para uma centelha.

FÍSICA, IV

Os movimentos típicos dos corpos naturais elementares – fogo, terra, etc. – mostram não apenas que o lugar é alguma coisa, mas também que ele exerce uma certa influência. Cada coisa é levada ao seu próprio lugar, se não é impedida; uma coisa para cima, outra para baixo. Similarmente, também, “para baixo” não é uma direção, mas aonde o que tem peso e o que é feito da terra – a implicação é que esses lugares não diferem meramente em sua posição relativa, mas também por possuírem potências distintas.

Física de Aristóteles: o movimento natural

De Caelo I

Todos os corpos e magnitudes naturais são capazes de locomoção; pois a natureza é seu princípio de movimento. Mas todo movimento que acontece em um lugar, toda locomoção, é ou reto ou circular ou uma combinação desses dois, que são os únicos movimentos simples. E a razão para isso é que esses dois, a linha reta e a linha circular, são as únicas magnitudes simples. A revolução em torno do centro é o movimento circular, enquanto os movimentos para cima e para baixo do centro são em linha reta, “para cima” significando o movimento do centro para fora, e “para baixo” o movimento na direção do centro. Todo movimento simples, então, necessariamente é um movimento para fora ou na direção ou em torno do centro. Isso parece estar de acordo com o que dissemos agora: um corpo tem sua compleição em três dimensões, portanto seu movimento se completa em três formas.

(…)

Podemos assumir que todo movimento é ou natural ou não-natural, e que o movimento que é não-natural para um corpo é natural para outro como, por exemplo, é o caso dos movimentos para cima e para baixo, que são naturais e não-naturais para o fogo e para a terra respectivamente. Daí segue-se necessariamente que o movimento circular, sendo não-natural para esses corpos, é o movimento natural de alguns outros. Além disso, se, de um lado, o movimento circular é natural para alguma coisa, essa coisa deve certamente ser algum corpo simples e primário que é levado a se mover com um movimento circular natural, assim como o fogo é levado a se mover para cima e a terra para baixo. Se, de outro lado, o movimento dos corpos que se movem circularmente em torno do centro é não-natural seria notável e, de fato, inconcebível que esse movimento sozinho deveria ser contínuo e eterno, sendo apesar de tudo contrário à natureza.

A filosofia de Platão – por Aristóteles

Tendo-se familiarizado desde jovem com Crátilo e com as doutrinas heraclitéias (de que todas as coisas sensíveis se encontram em perpétuo estado de fluxo e não se pode ter conhecimento delas), manteve mais tarde essas opiniões. Sócrates, no entanto, ocupava-se com questões éticas e negligenciava o mundo natural como um todo, mas buscava o universal nesses assuntos de Ética e, pela primeira vez, aplicou o pensamento às definições. Platão aceitou a sua doutrina, sustentando, porém, que o problema não dizia respeito às coisas sensíveis e sim a entidades de outra espécie – e, por este motivo, a definição comum não podia versar sobre qualquer coisa sensível, uma vez que estas mudavam constantemente. A essa outra espécie de coisas chamou Ideias (ou Formas), dizendo que os sensíveis eram denominados de acordo com elas e em virtude de uma relação com elas; pois o múltiplo existe graças à participação nas Ideias que com eles têm o nome em comum. Aqui só existe de novo o termo “participação”, pois os Pitagóricos dizem que as coisas existem por “imitação” dos números, e Platão, por “participação”, mudando apenas o nome. Mas quanto ao que seja “imitação” ou “participação” nas Ideias, deixaram a questão aberta.

Além disso, lado a lado com as coisas sensíveis e com as Formas ele admite os objetos da Matemática, que ocupariam uma posição intermediária, diferindo das coisas sensíveis pelo fato de serem eternos e imutáveis, e das Formas por serem múltiplos e semelhantes, enquanto cada Forma é única em si mesma.

Como as Formas eram as causas de tudo mais, ele supôs que os seus elementos fossem os elementos de todas as coisas. Como matéria, o grande e o pequeno eram os princípios; como realidade essencial, o Um; pois é do grande e do pequeno, pela participação no Um, que nascem os números.

Concordava, porém, com os Pitagóricos em afirmar que o Um é substância, e não predicado de outra coisa, e também que os números são as causas da realidade de tudo mais. Mas a postulação de uma díade e a construção do infinito com o grande e o pequeno, ao invés de tratá-lo como uno, lhe são peculiares; e, do mesmo modo, a opinião de que os números existem à parte das coisas sensíveis, ao passo que os outros sustentam que os próprios sensíveis são números e não colocam os seres matemáticos entre as Formas e as coisas sensíveis. Essa discrepância com os Pitagóricos, ao conceber o Um e os números como separados das coisas, assim como essa introdução das Formas, devem-se às suas pesquisas no campo das definições (pois os pensadores antigos não tinham noção da Dialética); e, se concebeu a díade como outra entidade, foi por acreditar que os números, salvo os que são primos, podem ser facilmente formados por meio da díade como se esta fosse uma substância plástica. No entanto, é exatamente o contrário que acontece, e a teoria não é razoável. Com efeito, eles pretendem derivar da matéria uma multiplicidade, se bem que a Forma só gere uma vez; ora, o que observamos é que a mesa é feita de um pedaço de matéria, enquanto o homem que aplica a forma, apesar de ser um, faz muitas mesas. E a relação entre macho e fêmea assemelha-se a esta, pois a fêmea é emprenhada numa só cópula, ao passo que o macho emprenha muitas fêmeas. E todavia estes fatos são imagens daqueles primeiros princípios.

Eis aí, pois, como se pronunciou Platão acerca destes problemas; pelo que ficou dito é evidente que ele usou apenas duas causas, a essencial e a material (já que as Formas são a causa da essência de tudo mais e o Um é a essência das Formas). Não menos óbvia é a natureza da matéria-substrato, de que são predicadas as Formas no caso das coisas sensíveis e o Um no caso das Formas: trata-se de uma díade, do grande e do pequeno. Além disso, atribui ele a causa do bem a um dos elementos e a do mal ao outro – como, segundo dissemos, tinham procurado fazer alguns dos seus predecessores, nomeadamente Empédocles e Anaxágoras.

(ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1969)