Sobre a censura à arte na teoria política platônica
– E no entanto não acusamos ainda a poesia do mais grave de seus malefícios. Que ela seja, com efeito, capaz de corromper até as pessoas honestas, eis o que sem dúvida é realmente temível.
– Seguramente, se ela surte tal efeito.
– Ouve, e considera o caso dos melhores dentre nós. Quando ouvimos Homero ou qualquer outro poeta trágico imitar um herói na dor, o qual, em meio de seus lamentos, se estende em longa tirada, ou canta, ou se golpeia no peito, sentimos, como sabes, prazer, abandonamo-nos para acompanhá-lo com nossa simpatia e, em nosso entusiasmo, louvamos como bom poeta aquele que, no mais alto grau possível, provocou em nós tais disposições.
– Sei disso; como poderia ignorá-lo?
– Mas, quando um infortúnio doméstico nos fere, já reparaste sem dúvida que temos como ponto de honra manter a atitude contrária, isto é, permanecer calmos e corajosos, porque assim age um homem e porque a conduta que há pouco aplaudimos só convém às mulheres.
* * *
– Assim, pois, Glauco, quando te deparares com panegiristas de Homero, afirmando que este poeta efetuou a educação da Grécia e que, para administrar os negócios humanos ou ensinar o seu manejo, é justo tomá-lo em mão, estudá-lo e viver regulando por ele toda a existência, deves por certo saudá-los e acolhê-los amigavelmente, como homens que são tão virtuosos quanto possível, e conceder-lhes que Homero é o príncipe da poesia e o primeiro dos poetas trágicos, mas saber outrossim que, em matéria de poesia, não se deve admitir na cidade senão os hinos em honra dos deuses e os elogios à gente de bem. Se, ao invés, admitires a Musa voluptuosa, o prazer e a dor serão os reis de tua cidade, em lugar da lei e deste princípio que, por comum acordo, sempre foi considerado o melhor: a razão.
(Platão, A República, 2ª ed. São Paulo: Difel, 1973, p. 224 ss).