Encontro “Questões de Filosofia Contemporânea”

Convido a todos os interessados em Filosofia para o Encontro Questões de Filosofia Contemporânea, que ocorrerá na próxima terça-feira, 01/03/2016, na UERJ.

Palestrantes:

Prof. Dr. Olival Freire (UFBA): Sobre o engajamento da filosofia da ciência com os fundamentos da teoria quântica

Prof. Dr. José Ternes (UFG): Bachelard e a filosofia

Prof. Dr. André Luís de Oliveira Mendonça (IMS/UERJ): Filosofia de problemas e problemas de filosofia: da filosofia ‘aplicada’ à filosofia ‘pura’. E de volta

* * *

LOCAL: Auditório do PPGFIL, 9º andar da UERJ (Campus Maracanã)

DATA E HORÁRIO: 01/03/2016, 10:00h.

A entrada é livre.

Convite – defesa de tese

Convido a todos os interessados para a defesa de minha tese de doutorado, intitulada A dialética da realidade: Gênese e desenvolvimento do surracionalismo de Bachelard.

A banca será composta pelos seguintes professores: Profª Drª Marly Bulcão Lassance Britto (orientadora) – UERJ; Profª Vera Portocarrero – UERJ; Prof. André Luís de Oliveira Mendonça – IMS/UERJ; Prof Dr Olival Freire – UFBA; Profª. José Ternes – UFG.

A defesa ocorrerá na próxima segunda-feira, 29/02/2016, às 15h, no auditório do PPGFIL, no 9º andar da UERJ (Campus Maracanã). A entrada é livre, como em todos os eventos do tipo.

A Escola Eleata

Assim como a Escola de Éfeso, a Escola Eleata, ou Escola Italiana, teve muita influência no pensamento posterior.

Os três mais importantes filósofos de Eléia foram Xenófanes (570 – c. 470 a.C.), Parmênides (510 – 440 a.C.) e Zenão (490 – 430 a.C.); os três abordaram o mesmo problema e deram respostas aproximadas. O problema abordado foi a questão da permanência e da identidade diante da mudança dos seres, ou a questão da unidade e da universalidade do Ser diante da multiplicidade dos seres particulares.

Este problema foi também abordado por Heráclito. A resposta de Heráclito foi ligeiramente diferente da apresentada pelos eleatas, embora a tradição da história da filosofia muitas vezes tenha considerado as teses de Heráclito não apenas um pouco distantes, mas opostas às da Escola de Eléia.

A resposta ao problema a respeito da natureza da realidade – se a realidade é una ou múltipla, se é estável ou dinâmica – foi dada, do mesmo modo que na filosofia de Heráclito, por meio da proposta de separação entre a natureza visível múltipla e variável e a realidade racional.

A grande novidade dos eleatas, contudo, é a atribuição do Um que abarca toda a multiplicidade dos seres ao Absoluto imutável. Para Heráclito, a realidade do Logos não era o Absoluto imutável; era também mudança.

O primeiro dos eleatas, Xenófanes, não era natural de Eléia, mas de Colófão. Contudo, por ter ido viver em Eléia, onde foi professor de Parmênides e ficou conhecido, além de ter influenciado toda a tradição eleata, é tratado como se fosse o primeiro dos eleatas.

Xenófanes propôs que o único princípio e ser de todas as coisas é uma unidade, um inteiro; essa unidade não pode ser qualificada, pois qualquer qualificação excluiria seu contrário, o que tornaria a unidade incompleta, e, consequentemente, menor que um, menos que o inteiro. Então, a unidade não pode ser limitada nem ilimitada, nem móvel nem estática.

Uma idéia inovadora de Xenófanes é que foi o primeiro a identificar essa unidade do ser que tudo abarca a Deus, a um Deus único e uno. Esse Deus é necessário, e, consequentemente, não pode ter sido criado por nada, sendo incriado desde sempre; como Deus é o ser absoluto, não pode ter sido criado por outro ser, e muito menos por um não-ser. Além disso, Deus não tem atributos humanos; os homens atribuem a Deus características suas (do mesmo modo que outro animal atribuiria a Deus características próprias de sua espécie). Portanto, Xenófanes defendeu, pela primeira vez, uma concepção filosófica de Deus: o ser necessário, uno e absoluto, sem começo nem fim no tempo ou no espaço, no qual todas as coisas particulares têm seu ser. Essa concepção foi e é extremamente importante na história do pensamento: é este o Deus sugerido por Aristóteles por meio da figura do primeiro motor; é este o Deus que as cinco vias de Tomás demonstram; é neste Deus que os filósofos teístas do século XVIII acreditam; é esta a concepção de Deus compatível inteiramente com a ciência contemporânea.

O segundo dos filósofos eleatas, Parmênides, foi aluno de Xenófanes e de suas idéias partiu para desenvolver seu próprio pensamento.

A primeira tese de Parmênides é que só uma coisa é, ou seja, só uma coisa tem a propriedade de ser, de existir: somente o Ser é. Isso significa que todas as coisas que são, que existem, compõem uma unidade, pois são no Ser. Contudo, obviamente há uma multiplicidade de coisas que são; essa multiplicidade é evidente pelos próprios fenômenos, ou seja, pelos próprios conhecimentos advindos dos sentidos. Parmênides concilia essa dupla realidade propondo que existe uma realidade formal única, o Ser; e que existe uma realidade fenomênica múltipla, composta por todas as coisas que são, ou seja, os seres.

Para Parmênides, o Ser é equivalente à concepção de Deus de Xenófanes, e é o único Ser verdadeiro; todas as outras coisas são enquanto coisas nas quais subsiste o Ser imóvel e uno. Isso significa que o movimento e a multiplicidade são o que não é o Ser nas coisas; ora, o não-ser não é, o não-ser não existe; consequentemente, a aparência de multiplicidade e movimento que temos por meio dos sentidos não é parte do Ser, e não existe realmente.

Percebe-se aqui que Parmênides tem uma posição surpreendentemente próxima à de Heráclito, que afirma que a realidade é o logos e que as pessoas geralmente não conhecem o logos, mas permanecem no mundo da multiplicidade e da mudança, um mundo de sonhos e não de vigília. Mas Parmênides tem, ao mesmo tempo, uma posição em parte diferente daquela de Heráclito. Enquanto Heráclito segue o caminho da conciliação dos opostos para chegar à unidade, propondo que da aparente dualidade se chega ao Uno, ao logos, Parmênides segue o caminho de propor a unidade do Ser imediatamente: o Ser não é divisível em opostos, o Ser simplesmente é. Este também é o sentido da discordância de Parmênides em relação aos pitagóricos: do mesmo modo que Heráclito, os pitagóricos afirmavam que da conciliação dos opostos se chega à unidade, ou seja: que a realidade é divisível, por ser número. Para os eleatas, contudo, a realidade simplesmente não é número, não é absolutamente divisível.

O terceiro grande filósofo eleata foi Zenão. Aluno de Parmênides, defendeu as idéias de seu mestre contra as dos pitagóricos. É conhecido pelos paradoxos com os quais nega a realidade do movimento.

Os paradoxos de Zenão são argumentos com os quais demonstra que é impossível que a realidade seja descontínua, múltipla e divisível como queriam os Pitagóricos, e que, portanto, a realidade deveria ser una, contínua e indivisível, o que era a tese de sua Escola. Na doxografia abaixo seus paradoxos são apresentados por Aristóteles.

TEXTOS DE APOIO

Xenófanes (570-470 a.C.)

Sobreviveram fragmentos de um poema, no qual criticava e satirizava várias idéias, incluindo a crença em deuses antropomórficos e a veneração dos gregos ao atletismo.

DOXOGRAFIA

[Fala o Estrangeiro de Eléia.] É uma espécie de mito que cada um parece contar-nos, como se fôssemos crianças. Um dizendo que são três os seres, mas combatem às vezes entre si alguns deles, e outras, tornados amigos, casam-se, têm filhos e os alimentam; outro diz que há dois, úmido e seco ou quente e frio, fá-los coabitar e casar-se. E entre nós a gente eleática, a começar de Xenófanes e ainda de mais longe, não se vê senão a unidade no que chamamos de “todas as coisas”, e assim nos explica em seus mitos.

(PLATÃO. Sofista)

Pois Parmênides parece referir-se ao um, segundo o conceito, e Melisso ao um, segundo a matéria. Por isso aquele diz que o um é limitado, e este, que é ilimitado. Xenófanes, o primeiro a postular a unidade (de Parmênides diz-se que foi discípulo dele), nada esclareceu, nem parece que vislumbrou nenhuma dessas duas naturezas, mas, dirigindo o olhar a todo o céu, diz que o um é o deus. Portanto, como dissemos, devem ser deixados na presente investigação, sobretudo dos dentre eles, por serem um tanto ingênuos, a saber, Xenófanes e Melisso.

(ARISTÓTELES. Metafísica)

FRAGMENTOS de XENÓFANES

Muitíssimas vezes mencionaram atos ímpios dos deuses, roubo, adultério e fraude mútua.”

Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm.”

Os egípcios dizem que os deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos.”

Parmênides (510-440 a.C.)

Chegaram ao nosso tempo alguns fragmentos de um poema dividido em duas partes. Na primeira, O caminho da verdade, explica como a realidade é uma; a mudança é impossível; a existência é eterna, uniforme e imutável. Na segunda parte, O caminho da opinião, explica o mundo de aparências, que é falso e enganoso. Essas ideias influenciaram fortemente Platão.

DOXOGRAFIA

Parmênides parece estar vinculado à unidade formal, enquanto Melisso, à unidade material. Parmênides parece, neste ponto, raciocinar com mais penetração. Julgando que fora do ser o não-ser nada é, forçosamente admite que só uma coisa é, a saber, o ser, e nenhuma outra… Mas, constrangido a seguir o real, admitindo ao mesmo tempo a unidade formal e a pluralidade sensível, estabelece duas causas e dois princípios: quente e frio, vale dizer, Fogo e Terra. Destes dois princípios ele ordena um (o quente) ao ser, o outro ao não-ser. Examinando a verdade nos seres, como seres admitia só as coisas sensíveis.

(ARISTÓTELES. Metafísica)

Uns negam absolutamente geração e corrupção, pois nenhum dos seres nasce ou perece, a não ser em aparência para nós. Tal é a doutrina da escola de Melisso e de Parmênides, doutrina que, por excelente que seja, não pode ser tida como fundada sobre a natureza das coisas.. Pois, se existem seres engendrados e absolutamente imóveis, pertencem mais a ciência outra que não à da natureza, e anterior a ela. Mas estes filósofos, ao conceberem a existência apenas para a substância das coisas sensíveis, crendo plenamente nisso, e os primeiros que sem tais naturezas imóveis não pode haver nem conhecimento nem sabedoria, não faziam mais que transferir aos seres sensíveis as razões só válidas para as realidades. Partindo desses raciocínios, deixando de lado o testemunho dos sentidos e negligenciando-o sob o pretexto de que se deve seguir a razão, alguns pensadores ensinam que o todo é um, imóvel e ilimitado; pois o limite só poderia limitar em relação ao vazio. Tais são as causas pelas quais esses pensadores desenvolveram as teorias sobre a verdade. Certamente, segundo este raciocínio, parece suceder assim com estas coisas; mas, se se tomam em conta fatos, semelhante opinião parece uma loucura.

(ARISTÓTELES. Do Céu)

Segundo Alexandre, Teofrasto, no primeiro livro de sua Física, relata assim o raciocínio de Parmênides: “O que está fora do ser não é ser; o não-ser é nada; o ser, portanto, é um”. E Eudemo conta da seguinte forma: “O que está fora do ser não é ser; e só de uma maneira se chama o ser; um, portanto, é o ser”. Se Eudemo escreveu isso em alguma outra parte com tanta sabedoria, não sei dizer. Mas nos Físicos, a respeito de Parmênides, escreveu o seguinte, donde é igualmente possível deduzir o que foi dito: “Parmênides não parece demonstrar que um é o ser, nem se alguém com ele concordaria em chamar o ser de uma forma, a não ser o que foi revelado nele de cada um como o homem dentre os homens”.

E dando em detalhe as palavras, a palavra do ser subsiste em todas as coisas como uma e ela mesma, assim, como a do animal nos animais. Da mesma maneira, se todos os seres fossem belos e nada fosse tomar o que não é belo, mas belas serão todas as coisas, e na verdade não é um só o belo mas muitos (pois a cor será bela em relação à familiaridade, aos costumes ou por outro motivo qualquer), assim também os seres todos serão, mas não um nem o mesmo; pois um é a água e outro, o fogo. Por conseguinte, ninguém leve a mal se Parmênides seguiu palavras não merecedoras de fé e se foi enganado pelas que então ele não soube explicar claramente – pois ninguém o disse de muitos modos, e foi Platão o primeiro que introduziu o duplo sentido, nem o sentido em si nem o por casualidade. Parece que ele foi totalmente enganado pelas palavras. É isso que foi observado das suas palavras e contradições e o raciocinar; pois não concordava, se não parecesse forçoso. Os antecessores, porém, o afirmaram sem provas.

(SIMPLÍCIO. Física)

FRAGMENTOS de PARMÊNIDES

SOBRE A NATUREZA

Necessário é o dizer e pensar que (o) ente é; pois é ser,

e nada não é; isto eu te mando considerar.

Pois primeiro desta via de inquérito eu te afasto,

mas depois daquela outra, em que mortais que nada sabem

erram, duplas cabeças, pois o imediato em seus

peitos dirige errante pensamento; e são levados

como surdos e cegos; perplexas, indecisas massas,

para os quais ser e não ser é reputado o mesmo

e não o mesmo, e de tudo é reversível o caminho.

* * *

Não, impossível que isso prevaleça, ser o não ente.

Tu porém desta via de inquérito afasta o pensamento;

nem o hábito multiexperiente por esta via te force;

exercer sem visão um olho, e ressoante um ouvido,

e a língua, mas discerne em discurso controversa tese

por mim exposta.

Só ainda o mito de uma via

resta, que é; e sobre esta índicios existem,

bem muitos, de que ingênito sendo é também imperecível,

pois é todo inteiro, inabalável e sem fim;

nem jamais era nem será, pois é agora todo junto,

uno, contínuo; pois que geração procurarias dele?

Por onde, donde crescido? Nem de não ente permitirei

que digas e pense; pois não dizível nem pensável

é que não é; que necessidade o teria impelido

a depois ou antes, se do nada iniciado, nascer?

Assim ou totalmente necessário ser ou não.

Nem jamais do que em certo modo é permitia força de fé

nascer algo além dele; por isso nem nascer

nem perecer deixou justiça, afrouxando amarras,

mas mantém; e a decisão sobre isto está no seguinte:

é ou não é; está portanto decidido, como é necessário,

uma via abandonar, impensável, inominável, pois verdadeira

via não é, e sim a outra, de modo a se encontrar e ser real.

E como depois pereceria o que é? Como poderia nascer?

Pois se nasceu, não é, nem também se um dia é para ser.

Assim geração é extinta e fora de inquérito perecimento.

Nem divisível é, pois é todo idêntico;

nem algo em uma parte mais, que o impedisse de conter-se,

nem também algo menos, mas é todo cheio do que é,

por isso é todo contínuo; pois ente a ente adere.

Por outro lado, imóvel em limites de grandes liames

é sem princípio e sem pausa, pois geração e perecimento

bem longe afastaram-se, rechaçou-os fé verdadeira.

O mesmo e no mesmo persistindo em si mesmo pousa.

e assim firmado aí persiste; pois firme a Necessidade

em liames o mantém, de limite que em volta o encerra,

para ser lei que não sem termo seja o ente;

pois é não carente; não sendo, de tudo careceria.

O mesmo é pensar e em vista do que é pensamento.

Pois não é sem o que é, no qual é revelado em palavra,

acharás o que pensar; pois nem era ou é ou será

outro fora do que é, pois Moira o encadeou

a ser inteiro e imóvel; por isso tudo será nome

quanto os mortais estatuíram, convictos de ser verdade,

engendrar-se e perecer, ser e também não,

e lugar cambiar e cor brilhante alterar.

Então, pois limite é extremo, bem terminado é,

de todo lado, semelhante a volume de esfera bem redonda,

do centro equilibrado em tudo; pois ele nem mesmo algo maior

nem algo menor é necessário ser aqui ou ali;

pois nem não-ente é, que o impeça de chegar

ao igual, nem é que fosse a partir do ente

aqui mais e ali menos, pois é todo inviolado;

pois a si de todo igual, igualmente em limites se encontra.

Neste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento

sobre a verdade; e opiniões mortais a partir daqui

aprende, a ordem enganadora de minhas palavras ouvindo.

Pois duas formas estatuíram que suas sentenças nomeassem,

das quais uma não se deve – no que estão errantes -;

em contrários separaram o compacto e sinais puseram

à parte um do outro, de um lado, etéreo fogo de chama,

suave e muito leve, em tudo o mesmo que ele próprio

mas não o mesmo que o outro; e aquilo em si mesmo puseram

em contrário, noite sem brilho, compacto denso e pesado.

A ordem do mundo, verossímil em todos os pontos, eu te revelo,

para que nunca sentença de mortais te ultrapasse.”

Zenão (490-430 a.C.)

DOXOGRAFIA

Por outro lado, a dificuldade que Zenão aponta, dizendo que, “se o lugar é alguma coisa, ele está em alguma coisa”, não é difícil resolver; pois nada impede que em outra coisa esteja o primeiro lugar, mas seguramente não como naquele lugar etc. A dificuldade de Zenão exige uma reflexão; com efeito, se todo ser está num lugar, é claro que haverá também um lugar do lugar, e isto vai ao infinito. A isto mesmo parece levar também à dificuldade de Zenão. De fato, julga ele que todo ser está em algum lugar; se o lugar é dos seres, onde estaria ele? Certamente em outro lugar, e aquele, por sua vez, em outro, e assim por diante… Para Zenão, diremos que o “onde” se diz de muitas maneiras: se ele julgou estarem os seres num lugar, não julgou bem; pois ninguém diria que saúde, coragem e outras coisas mil estão num lugar; nem mesmo, é claro, sendo o lugar tal como se afirma. Se de outra forma se diz “o onde”, também o lugar seria onde; ora, o limite do corpo é o onde do corpo; pois é o extremo.

(ARISTÓTELES. Física)

Há quatro argumentos de Zenão a respeito do movimento que oferecem dificuldades a quem queira resolvê-las.

O Primeiro Argumento: A impossibilidade do movimento é deduzida do fato de que o móvel transportado deve chegar primeiro à metade antes de alcançar o termo; sobre isso discorremos nos argumentos anteriores. Por isso o argumento de Zenão supõe, sem razão, que os infinitos ou tocados sucessivamente num tempo infinito. Com efeito, a extensão e o tempo, e em geral todo conteúdo, chamam-se infinito em dois sentidos, seja em divisão, seja com relação aos extremos. Sem dúvida, os infinitos em quantidade não podem ser tocados num tempo finito; mas os infinitos em divisão, sem, uma vez que o próprio tempo também é infinito dessa maneira. Por conseguinte, é no tempo infinito e não no tempo finito que se pode percorrer o infinito, e, se se tocam infinitos, é por infinitos, não por finitos. Temos muitos argumentos contrários à opinião comum, como a de Zenão, que não admite mover-se ou atravessar o estádio.

O Segundo Argumento: é o que leva o nome de Aquiles. É o seguinte: o mais lento na corrida jamais será alcançado pelo mais rápido; pois o que persegue deve sempre começar por atingir o ponto donde partiu o que foge. É o mesmo argumento que o da dicotomia: a única diferença está em que, se a grandeza sucessivamente acrescentada é bem dividida, não o é mais em dois.

O Terceiro Argumento: Pretende que a flecha, ao ser projetada, esteja em repouso. É a consequência da suposição de que o tempo seja composto de instantes; se se recusa esta hipótese, não há mais o silogismo. Zenão comete um paralogismo: pois, se toda coisa – diz ele – está num dado momento em repouso ou em movimento (mas nada está em movimento) quando está num espaço igual a si mesmo, o que é projetado está sempre no momento presente (e toda coisa num lugar a si mesmo está no momento presente), a flecha projetada está sempre imóvel.

O Quarto Argumento: Trata de massas iguais que se movem em sentido contrário no estádio ao longo de outras massas iguais, umas a partir do fim do estádio, outras do meio, com velocidades iguais; a consequência pretendida é a de que metade do tempo seja igual a seu dobro. O paralogismo consiste em se pensar que uma grandeza igual, com velocidade igual, se movimente num tempo igual, tanto ao longo do que está em movimento como ao longo do que está em repouso. Mas isso é falso. Sejam AA as de massas iguais que estão imóveis; BB, as que partem do meio dos AA e são iguais a essas em número e tamanho; CC, as que partem da extremidade, iguais àquelas em número e tamanho e de mesma velocidade que as dos BB. Consequências: o primeiro B está na extremidade ao mesmo tempo que o primeiro C, visto que se movem paralelamente. Do outro lado, os CC percorreram todo o intervalo ao longo de todos os BB, e os BB, metade do intervalo ao longo dos AA; por conseguinte, só metade do tempo; com efeito, para os grupos tomados dois a dois, há igualdade do tempo de passagem diante de cada A. Mas ao mesmo tempo os BB passaram diante de todos os CC; pois o primeiro B e o primeiro C estão, ao mesmo tempo, em extremidades opostas, sendo o tempo para cada um dos BB – diz ele – o primeiro que para os CC, porque os dois passam em tempo igual ao longo dos AA. Este é o argumento, e o mais conveniente, como diz Eudemo, pelo fato de o paralogismo ser evidente, pois as massas que se movem em sentido contrário umas às outras afastam-se com dupla distância no mesmo tempo em que o que se move ao longo do que está imóvel se afasta pela metade, e será de igual velocidade à daquelas.

(ARISTÓTELES. Física)

FRAGMENTOS de ZENÃO

Se o ser não tivesse grandeza, também não poderia existir, mas, se existe, necessariamente cada parte tem certa grandeza e espessura, e distância uma da outra. E a respeito da parte que está diante dela o mesmo se diz. Pois esta também terá grandeza e uma outra estará diante dela. É o mesmo, então, dizer isso uma vez apenas e dizê-lo sempre. Pois nenhuma parte do ser será limite extremo, nem estará uma parte sem relação com outra. Assim, se múltiplas são as coisas, necessariamente são pequenas e grandes; pequenas a tal ponto que não têm grandeza, grandes a tal ponto que são infinitas.”

Diz Zenão que uma coisa que não tem grandeza e espessura, nem massa, não poderia existir. Pois, se fosse acrescentada a uma outra coisa, em dada a aumentaria; pois, se uma grandeza que nada é a uma outra se acrescenta, nada pode ganhar em grandeza esta última. E assim já o acrescentado nada seria. Mas se, subtraída uma grandeza, a outra em nada diminuir, e, ao contrário, acrescentada uma, a outra não aumentar, é evidente que o acrescentado nada era, nem o subtraído.”

A questão de Lógica no 1o exame de qualificação da UERJ – vestibular 2016

Hoje de manhã, foi realizado o 1o exame de qualificação do vestibular de 2016 da UERJ.

Fui ver agora a prova. Uma das questões (a de número 14) me chamou a atenção. Ela diz:

Antônio Prata, ao comentar o ataque ao jornal Charlie Hebdo, construiu uma série de variações do argumento típico do método dedutivo, conhecido como “silogismo” e normalmente organizado na forma de três sentenças em sequência.

A organização do silogismo sintetiza a estrutura do próprio método dedutivo, que se encontra melhor apresentada em:

(A) premissa geral – premissa particular – conclusão

(B) premissa particular – premissa geral – conclusão

(C) premissa geral – segunda premissa geral – conclusão particular

(D) premissa particular – segunda premissa particular – conclusão geral

Há vários equívocos na questão.

Em primeiro lugar, não se pode afirmar que “o método dedutivo é conhecido também como silogismo”. Eles não são a mesma coisa. Todo silogismo é um caso de raciocínio dedutivo, mas nem todo raciocínio dedutivo é um silogismo. A dedução é uma operação mental; o silogismo é a forma lógica dessa operação.

Em segundo lugar, o texto diz que “normalmente o silogismo está organizado na forma de três sentenças em sequência”. O enunciado diz “normalmente”, mas o que é “normalmente”? Afinal, o silogismo pode também ter somente duas sentenças (entimema) ou mais de três (polissilogismo, sorites). Entimema, polissilogismo e sorites são tão casos de silogismo quanto o categórico: não são nem mais “normais” nem menos “normais”. A afirmação do enunciado é equivalente a dizer: “nas palavras de língua portuguesa, normalmente a consoante B é seguida da vogal A”. Não faz sentido. Há diferentes tipos de silogismo, e nenhum pode ser considerado “mais normal” que outro, do mesmo modo que não se pode considerar que uma sílaba seja considerada “mais normal” que outra. “Silogismo normal”… só se inventaram um novo tipo de raciocínio!

Em terceiro lugar, o comando da questão propõe que se indique “a melhor apresentação do silogismo” ou da “estrutura do método dedutivo”. Como assim, “silogismo melhor apresentado”, “estrutura do método dedutivo melhor apresentada”? Afinal, há inúmeras possibilidades de apresentar a estrutura lógica do silogismo, e não existe nenhuma razão racional para dizer que uma é “melhor” do que outra. Dizer que existe uma forma de expor o silogismo “melhor” do que outra expressa um juízo de valor, não uma regra lógica. Por isso, o comando da questão é, do ponto de vista lógico, absurdo.

Em quarto lugar, as alternativas dizem “premissa geral”, “premissa particular” et cetera, nessa linha. Ora, isso é simplesmente errado. Na lógica dedutiva não existe “premissa geral” nem “premissa particular”. Afinal, não se trata simplesmente da utilização de “termos gerais” (como “todos”) ou “particulares” (como “este”). É perfeitamente possível, por exemplo, fazer uma dedução somente utilizando “termos gerais”: “Todos os cariocas são fluminenses; todos os fluminenses são brasileiros; portanto, os cariocas são também brasileiros”. O que se utiliza em lógica dedutiva são “termo menor”, “termo médio” e “termo maior”, sem nenhuma relação necessária com ser “geral” ou “particular”. No exemplo dado, “carioca” é termo menor; “fluminense” é termo médio; “brasileiro” é termo maior. Por isso, não se pode falar em “premissa geral” nem “premissa particular”. O que temos no silogismo categórico é: uma premissa maior (que liga o termo médio ao termo maior); uma premissa menor (que liga o termo menor ao termo médio); e uma conclusão (que liga o termo menor ao termo maior, sem usar o termo médio).

Em quinto e último lugar, concluindo tudo o que foi dito acima, é simplesmente absurdo, errado, falso, dizer que a alternativa (A) – que seria a correta de acordo com o gabarito – é um exemplo “melhor” de silogismo do que a alternativa (B). Quer dizer que se for invertida a ordem da “premissa maior” (e não “premissa geral”) e da “premissa menor” (e não “premissa particular”), então o argumento deixa de ser um silogismo? Faça-me o favor!

Vou ilustrar isso tudo com um exemplo simples.

Veja:

(1) A prova de vestibular pode ter questões imperfeitas, pois é escrita por pessoas.

(2) A prova de vestibular é escrita por pessoas.

Logo, a prova de vestibular pode ter questões imperfeitas.

(3) Pessoas podem escrever questões imperfeitas.

A prova de vestibular é escrita por pessoas.

Logo, a prova de vestibular pode ter questões imperfeitas.

(4) As pessoas pertencem ao conjunto de seres que podem escrever questões de vestibular.

Questões imperfeitas podem ser escritas por pessoas.

Logo, provas de vestibular podem ter questões imperfeitas.

O raciocínio (1) é dedutivo, mas não está escrito sob a forma de silogismo.

O raciocínio (2) é dedutivo, é um silogismo, mas não apresenta uma de suas premissas: ele é um entimema, e tem uma de suas premissas meramente subentendida.

O raciocínio (3) é dedutivo, é um silogismo categórico, e apresenta primeiro a premissa menor e depois a premissa maior.

O raciocínio (4) é dedutivo, é um silogismo categórico, e apresenta primeiro a premissa maior e depois a premissa menor.

Todos são raciocínios dedutivos válidos (e olha que nem falamos de raciocínios dedutivos inválidos, que não deixam de ser raciocínios dedutivos por isso!). O argumento (1) é o único que não se constitui como silogismo. Todos os outros são silogismos perfeitamente “normais” (para falar como o enunciado). Não há um “melhor” (!) do que outro.

Mas, de acordo com a banca que formulou a questão da UERJ, somente o raciocínio (4) é um verdadeiro raciocínio dedutivo!!!

Como é possível que um conjunto tão completo de erros primários, grosseiros, totais tenha lugar numa questão de vestibular da UERJ?

“Verdade” – por Foucault

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

Em nossas sociedades, a ‘economia política’ da verdade tem cinco características historicamente importantes: a ‘verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’).

(FOUCAULT, Michel. Entrevista a Alexandre Fontana.In: Microfísica do Poder.
Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.12-13)

A vida e a obra de Maquiavel – por Robert Audi

Niccolò Machiavelli (1469-1527), conhecido em português como Nicolau Maquiavel, é geralmente considerado o mais influente pensador político do Renascimento. Nascido em Florença, foi educado na tradição humanista cívica. De 1498 a 1512, foi secretário da chancelaria da república de Florença, com responsabilidades nas relações exteriores e na milícia civil doméstica. Suas tarefas envolveram numerosas missões diplomáticas na Itália e fora dela. Com a queda da república de Florença em 1512, foi demitido pelo regime de Médici que voltava ao poder. De 1513 a 1527, viveu em retiro forçado, aliviado pelo ofício de escritor e por indicações ocasionais a postos menos importantes. (…)

Com Maquiavel emerge uma nova visão da política como uma atividade autônoma levando à criação de Estados livres e poderosos. Essa visão deriva suas normas a partir do que as pessoas realmente fazem, em vez de derivá-las a partir do que as pessoas deveriam fazer. Como resultado, o problema do mal surge como uma questão central: o ator político reserva-se ao direito de “entrar no mal quando for necessário”. O requerimento das filosofias políticas clássica, medieval e humanista cívica de que a política deve ser praticada dentro das fronteiras da virtude é cumprido ao ser redefinido o significado da própria virtude. A virtù maquiaveliana é a habilidade de alcançar a “verdade efetiva” sem ater-se a restrições morais, filosóficas ou teológicas. Maquiavel reconhece dois limites à virtù: (1) fortuna, compreendida como o acaso; e (2) o temperamento do próprio indivíduo.

A história é vista como o produto conjunto da atividade humana e da alegada atividade celeste (compreendida pela astrologia), entendida como a “causa geral” de todos os movimentos no mundo sublunar. Não há lugar aqui para a soberania de Deus, nem para a Providência. Reinos, repúblicas e religiões seguem um padrão naturalista de nascimento, crescimento e declínio. Mas, dependendo do resultado da disputa entre virtù e fortuna, há a possibilidade da renovação política; e Maquiavel via a si mesmo como o filósofo da renovação política.

Historicamente, a filosofia de Maquiavel veio a ser identificada com o maquiavelismo, a doutrina segundo a qual a razão de Estado não reconhece moral superior alguma e que, para o bem do Estado, tudo é permitido – ou seja, a idéia da preponderância da Razão de Estado.

(AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of Philosophy)

O lado oculto da filosofia – poema de Bernardo Lucas Piñon de Manfredi

Na semana passada, um aluno do Ensino Médio trouxe um poema que escreveu. Gostei muito.

Com sua autorização, reproduzo o poema aqui no blog.

 

O LADO OCULTO DA FILOSOFIA

Bernardo Lucas Piñon de Manfredi

 

A arte de pensar

não está apenas nos momentos de silêncio

mas no momento em que se estuda o silêncio

e como é tão difícil ter silêncio entre as almas.

 

Por quê? A alma, assim como toda a humanidade,

tem sentimentos, heranças espirituais

é feita de escrava, sendo desbotada

a ponto de preferir agir sem pensar

e torna-se uma maldição sobrenatural.

 

O pensamento exige explicações

levando em conta os mistérios e mitos da ciência.

Será que sempre um método científico

pode descobrir as profundezas da humanidade?

 

Há coisas que a ciência não entende

e a filosofia terá sempre uma resposta soberana

é um meio de interagir com os mistérios e mitos

e todos os conceitos que conhecemos.

Mas… qual é o lado oculto da filosofia?

 

O mundo é tão grande quanto pequeno

que portas se abrem quando menos se espera.

Que os lados são sempre únicos quando fazemos escolhas.

Mas a filosofia está sempre aberta

para entender as portas, os lados, as escolhas e a si mesmo.

Simulado ENEM – 80 QUESTÕES de Filosofia

A cada ano, a prova do ENEM tem apresentado mais e mais questões de Filosofia.

Para ajudar na preparação dos vestibulandos, ofereço aos meus leitores um simulado  com 80 questões com conteúdo de Filosofia. Todas as questões foram extraídas de provas do ENEM de 2008 a 2013.

Este simulado é a mais completa reunião de questões das últimas provas do ENEM com conteúdo de Filosofia disponível na web.

Desejo uma boa preparação!

Acesse o simulado em PDF aqui: simulado filosofia no enem 2014

A ética aristotélica

Aristóteles foi o primeiro pensador a insistir que a busca pelo conhecimento deveria ser dividida em diferentes áreas determinadas pelo foco da questão. Assim, por exemplo, distinguiu entre a filosofia da natureza, que seria o chamamos atualmente “ciência”, e metafísica, que seria o que atualmente chamamos “filosofia”. Foi também o primeiro filósofo a insistir na importância da investigação sistemática experimental e na coleta de dados, assim proporcionando um impulso no desenvolvimento do método científico.

O interesse de Aristóteles no mundo material indicava que sua abordagem filosófica era diferente da platônica. Em contraste com Platão, que defendia que nosso mundo cotidiano da experiência é mera cópia imperfeita do reino das Ideias perfeitas, Aristóteles acreditava que a realidade última das coisas reside nos objetos físicos – que podem ser conhecidos pela observação. Assim, levou a cabo estudos biológicos extensos, examinando mais de quinhentas espécies de animais.

Talvez por causa de seu interesse no mundo dos seres vivos, Aristóteles pensava que era possível explicar a existência de todas as coisas em termos de suas funções; isto é, em termos do papel que exercem ao perseguir uma finalidade.

Essa ideia geral aplica-se também a seu pensamento sobre a ética. Uma coisa é virtuosa na medida em que realiza seu potencial latente. Assim, os seres humanos atingem a excelência se agem de acordo com os ditames da razão; a prática da vida virtuosa de acordo com a razão conduz à felicidade.

Um aspecto importante da teoria ética de Aristóteles é a sua famosa doutrina da justa medida, ou do meio-termo.

Segundo essa doutrina, os seres humanos agem bem se evitam os extremos nas respostas que dão às situações que os confrontam. Uma ação justa é a que não peca por deficiência nem por excesso; é uma ação que procura um caminho intermediário.

Por exemplo, a virtude da coragem encontra-se entre a covardia (deficiência) e a temeridade (excesso).

Assim como a saúde do corpo é determinada pelo equilíbrio fisiológico de seus componentes, a virtude consiste na disposição em escolher o justo meio. Essa capacidade, que se adquire e se desenvolve pelo exercício, exclui sistematicamente os contrapostos vícios do excesso e da escassez, realizando uma mediação sobre o controle da razão.

Não há uma fórmula para determinar precisamente quais ações são corretas em uma ocasião particular qualquer; sua definição é questão de avaliar cuidadosamente as respostas apropriadas à luz das circunstâncias particulares.

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles, e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos. Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que acabamos de mencionar, a vida política e a contemplativa. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo.

A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado.

Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao menos, a virtude é mais excelente. Poder-se-ia mesmo supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modo incompleta, porque pode acontecer que seja virtuoso quem está dormindo, quem leva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com os maiores sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém jamais considerará feliz um homem que vive de tal maneira.

Quanto a isto, basta, pois o assunto tem sido suficientemente tratado mesmo nas discussões correntes. A terceira vida é a contemplativa, que examinaremos mais tarde.

Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa. E assim, antes deveriam ser incluídos entre os fins os que mencionamos acima, porquanto são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixemos, pois, este assunto. (…)

Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos.

Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.

Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série infinita.

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação.

Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o “bem feito” residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função.

Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela?

A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E, como a ”vida do elemento racional” também tem dois significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo.

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom tal-e-tal” têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa.

Mas é preciso ajuntar “numa vida completo”. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso. (…)

Também se ajusta à nossa concepção a dos que identificam a felicidade com a virtude em geral ou com alguma virtude particular, pois que à virtude pertence a atividade virtuosa. Mas há, talvez, uma diferença não pequena em colocarmos o sumo bem na posse ou no uso, no estado de ânimo ou no ato. Porque pode existir o estado de ânimo sem produzir nenhum bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos Jogos Olímpicos não são os mais belos e os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que competem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), também as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente.

Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude.

Ora, na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. Em conseqüência, a vida deles não necessita do prazer como uma espécie de encanto adventício, mas possui o prazer em si mesma. Pois que, além do que já dissemos, o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em agir com justiça, nem liberal o que não experimenta prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos.

Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos:

Das coisas a mais nobre é a mais justa, / e a melhor é a saúde;/ Mas a mais doce é alcançar o que / amamos.

Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ou então, uma delas — a melhor —, nós a identificamos com a felicidade.

E no entanto, como dissemos, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas ações utilizamos como instrumentos os amigos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuja ausência empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparência, ou mal-nascido, ou solitário e sem filhos, não tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos.

Como dissemos, pois, o homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude.

Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de adestramento, ou se ela nos é conferida por alguma providência divina, ou ainda pelo acaso. Ora, se alguma dádiva os homens recebem dos deuses, é razoável supor que a felicidade seja uma delas, e, dentre todas as coisas humanas, a que mais seguramente é uma dádiva divina, por ser a melhor.

Esta questão talvez caiba melhor em outro estudo; no entanto, mesmo que a felicidade não seja dada pelos deuses, mas, ao contrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie de aprendizagem ou adestramento, ela parece contar-se entre as coisas mais divinas; pois aquilo que constitui o prêmio e a finalidade da virtude se nos afigura o que de melhor existe no mundo, algo de divino e abençoado.

Dentro desta concepção, também deve ela ser partilhada por grande número de pessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la mediante uma certa espécie de estudo e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa maneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatos sejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, por natureza, tão bom quanto poderia ser, e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas.

Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito.

A resposta à pergunta que estamos fazendo é também evidente pela definição da felicidade, porquanto dissemos que ela é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentes como condições prévias da felicidade, e outros são naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos. E isto, como é de ver concorda com (…) que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações.

Ê natural, portanto, que não chamemos feliz nem ao boi, nem ao cavalo, nem a qualquer outro animal, visto que nenhum deles pode participar de tal atividade. Pelo mesmo motivo, um menino tampouco é feliz, pois que, devido à sua idade, ainda não é capaz de tais atos; e os meninos a quem chamamos felizes estão simplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que neles depositamos. Porque, como dissemos, há mister não só de uma virtude completa mas também de uma vida completa, já que muitas mudanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima de grandes infortúnios na velhice, como se conta de Príamo no Ciclo Troiano; e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ninguém chama feliz.

Então ninguém deverá ser considerado feliz enquanto viver, e será preciso ver o fim, como diz Sólon?

Mesmo que esposemos essa doutrina, dar-se-á o caso de que um homem seja feliz depois de morto? Ou não será perfeitamente absurda tal idéia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie de atividade? Mas, se não consideramos felizes os mortos e se Sólon não se refere a isso, mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar um homem de venturoso porque finalmente não mais o podem atingir males nem infortúnios, isso também fornece matéria para discussão. Efetivamente, acredita-se que para um morto existem males e bens, tanto quanto para os vivos que não têm consciência deles: por exemplo, as honras e desonras, as boas e más fortunas dos filhos e dos descendentes em geral.

E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenha vivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitos reveses podem suceder aos seus descendentes. Alguns serão bons e terão a vida que merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também é evidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podem variar indefinidamente. Seria estranho, pois, se os mortos devessem participar dessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado, também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse o menor efeito sobre a felicidade de seus ancestrais.

Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo exame mais atento talvez nos dê a solução do presente problema. Ora, se é preciso ver o fim para só então declarar um homem feliz, temos aí um paradoxo flagrante: quando ele é feliz, os atributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados dele devido às mudanças a que estão sujeitos, porque admitimos que a felicidade é algo de permanente e que não muda com facilidade, ao passo que cada indivíduo pode sofrer muitas voltas da roda da fortuna. É claro que, para acompanhar o passo de suas vicissitudes, deveríamos chamar o mesmo homem ora de feliz, ora de desgraçado, o que faria do homem feliz um “camaleão, sem base segura”. Ou será um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? O sucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas (…) a existência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o que constitui a felicidade ou o seu contrário são as atividades virtuosas ou viciosas.

A questão que acabamos de discutir confirma a nossa definição, pois nenhuma função humana desfruta de tanta permanência como as atividades virtuosas, que são consideradas mais duráveis do que o próprio conhecimento das ciências. E as mais valiosas dentre elas são mais duráveis, porque os homens felizes de bom grado e com muita constância lhes dedicam os dias de sua vida; e esta parece ser a razão pela qual sempre nos lembramos deles. O atributo em apreço pertencerá, pois, ao homem feliz, que o será durante a vida inteira; porque sempre, ou de preferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou na contemplação virtuosa, e suportará as vicissitudes da vida com a maior nobreza e decoro, se é “verdadeiramente bom” e “honesto acima de toda censura”.

Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto à importância. É claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes não pesam muito na balança, mas uma multidão de grandes acontecimentos, se nos forem favoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em si mesmos, de feitio a aumentar a beleza da vida, mas a própria maneira como um homem os recebe pode ser nobre e boa); e, se se voltarem contra nós, poderão esmagar e mutilar a felicidade, pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas atividades. Todavia, mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por nobreza e grandeza de alma.

Se as atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis. Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade, pensamos nós, todas as contingências da vida, e sempre tira o maior proveito das circunstâncias, como um general que faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calçados com o couro que lhe dão; e do mesmo modo com todos os outros artífices. E, se assim é, o homem feliz nunca pode tornar-se desgraçado, muito embora não alcance a beatitude se tiver uma fortuna semelhante à de Príamo.

E tampouco será ele versátil e mutável, pois nem se deixará desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns, mas somente por muitas e grandes; nem, se sofreu muitas e grandes desventuras, recuperará em breve tempo a sua felicidade. Se a recuperar, será num tempo longo e completo, em que houver alcançado muitos e esplêndidos sucessos.

Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtude perfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante um período qualquer, mas através de uma vida completa? Ou devemos acrescentar: “E que está destinado a viver assim e a morrer de modo consentâneo com a sua vida”? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade, afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim, chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essas condições se realizem ou estejam destinadas a realizar-se — mas homens felizes. Sobre estas questões dissemos o suficiente.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

 

TEXTO 2

 

Antes de tudo, devemos notar que as ações estão sujeitas a se tornar imperfeitas ou por escassez ou por excesso (para recorrermos a testemunhos evidentes acerca de questões obscuras), como podemos ver a propósito da força e da saúde: de fato, tanto os excessivos quanto os escassos exercícios físicos prejudicam a força, assim como o beber e o comer quando superabundantes ou insuficientes estragam a saúde, ao passo que a justa proporção a produz, aumenta e preserva.

O mesmo acontece com a moderação, a coragem e as outras virtudes. De fato, quem evita e teme qualquer coisa e nada enfrenta torna-se tímido; quem, ao contrário, não teme absolutamente nada, mas enfrenta qualquer coisa, torna-se temerário. Do mesmo modo, quem goza de todo tipo de prazer e não se abstém de nenhum se torna intemperante; quem, no entanto, foge de todos, como os rústicos, torna-se insensível. Portanto, a moderação e a coragem são prejudicadas tanto pelo excesso quanto pela escassez, ao passo que são preservadas no caminho do meio.

A virtude é, portanto, uma ordenação de intenções, que consiste na mediação em relação a nós mesmos, definida pela razão e estabelecida como o faria o homem sábio. É uma mediação entre dois vícios: um por excesso, outro por escassez. E como alguns vícios são por escassez e outros são por excesso do que é devido, seja nas paixões, seja nas ações, a virtude encontra e escolhe a justa medida.

Portanto, segundo a sua essência e segundo a razão que estabelece a sua natureza, a virtude é uma mediação, mas em relação ao bem e à perfeição ela está no ponto mais elevado.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)