A filosofia na Idade Média – por A. S. McGrade

Como era fazer filosofia na Idade Média? […]

O que nós conhecemos como filosofia medieval emergiu no fim do Império Romano a partir de uma acomodação mútua da fé cristã e do pensamento clássico. Essa mistura passou por séculos de dormência no Ocidente, enquanto ao mesmo tempo começou a tomar ar fresco no mundo islâmico. No século XI e XII a filosofia reemergiu numa nova Europa, em forma alterada e contra algumas oposições. Então, aumentada e desafiada pelo trabalho dos pensadores islâmicos e judeus, alcançou no século XIII uma idade de ouro de análise sistemática e especulação correspondente a um novo grau de racionalização na política e na sociedade. Finalmente, a significância do século XIV permanece contestada, a despeito de muitos estudiosos recentes demonstrarem seu brilho. […]

EMERGÊNCIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL NO IMPÉRIO ROMANO TARDIO

A emergência da filosofia medieval é surpreendente à luz da oposição entre o Cristianismo e a filosofia, oposição que data dos tempos em que São Paulo denunciava a “sabedoria do mundo” (especificamente, a sabedoria dos gregos). Mas falando historicamente, quando Paulo foi realmente confrontado com filósofos no monte do Aerópago em Atenas, assumiu uma linha conciliatória, notando semelhanças entre seus ensinamentos e os versos de um poeta estóico. No antigo mundo mediterrâneo, a filosofia não consistia de uma reflexão separada do dia-a-dia. Ela exigia um engajamento total da pessoa. Assim, no século II e III, a filosofia, como praticada pelos Estóicos, Platônicos e Epicuristas, começava a ficar muito parecida com o Cristianismo professado entre gregos e romanos convertidos.

A filosofia medieval nasceu neste ambiente intelectual. Não por coincidência, essas eram as circunstâncias sob as quais o Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano. De fato, é apenas um ligeiro exagero caracterizar a conversão legal iniciada no século IV pelo imperador Constantino como um epifenômeno de um meio cultural mais geral, que incluía o espalhamento das comunidades judaicas e de sua religião pelo Mediterrâneo, com a correspondente helenização do pensamento judeu a partir da aquisição de idéias filosóficas gregas. Por volta do século III, um discurso comum floresceu entre a elite – um discurso bem semelhante, seja pagão, judeu ou cristão. A constituição de Constantino foi somente fazer da variante cristã a dominante, eventualmente por meios opressivos, a partir do século IV. Mas o aparato conceitual, as inclinações intelectuais e as ferramentas interpretativas que foram usadas no curso desse processo não eram nem especificamente cristãs, nem eram novas. […]

Os primeiros séculos a partir da conversão do Império Romano observaram a maturação de uma especulação cristã que, em grande parte, continuava os padrões de pensamento da Antiguidade, padrões que precediam a conversão ou que eram evidentes após a conversão de Roma em correntes filosóficas externas ao círculo de influência cristã. Conseqüentemente, a primeira fase da filosofia medieval pode ser considerada como fazendo parte de uma trajetória histórica que conecta a filosofia da Grécia Clássica com a praticada no mundo moderno.

A situação mudou dramaticamente do fim do século VI em diante. (…) Reflexos da tradição anterior era encontrada na Espanha, na época sujeita a reinos dos Visigodos. Em todos os outros lugares do Ocidente, a atenção deslocou-se somente para fins narrativos, afetivos e práticos. Mesmo a escrita sobre assuntos religiosos tornou-se menos teológica, no sentido de ter se tornado menos compromissada com o exame e a exploração sistemática das doutrinas, e mais devocional e movida pela inspiração. Na parte ocidental do Império, o imperador Justiniano é comumente acusado de ter fechado as escolas de filosofia em Atenas em 529. Se houve um fechamento de fato (pois filósofos pagãos continuaram a atrair estudantes a Atenas depois de Justiniano), isso não deveria ser pensado como o suspiro de morte para a filosofia Greco-Romana. Também em Atenas, naquela época, a filosofia já não estava mais no centro da atenção intelectual.

Isso nos leva à segunda parte da filosofia medieval, que segue até o meio do século XI. A partir do fim do século VI a metade ocidental do mundo mediterrâneo sofreu uma série de profundos choques econômicos e demográficos, que derrubaram o comércio, a política e, finalmente, a cultura dos centros vitais do Império Romano e da economia no Leste falante do grego. O que se seguiu não foi a extinção do estudo clássico latino que havia florescido na primeira fase da filosofia medieval, mas um estreitamento de foco e um redirecionamento de interesse. Já no século V, as escolas públicas de Latim e de literatura haviam desaparecido. Romanos e Germanos proeminentes que aspiravam à eminência estudavam Letras em casa, talvez com um tutor privado. Esses eram os indivíduos que carregaram o que sobrava do discurso literato, enquanto a política e a economia do Império dissolviam-se. Era entre bispos cristãos e nos grupos de dependentes e conselheiros em torno deles que a cultura ocasionalmente elevava-se acima do nível elementar. Contudo, as ferramentas disponíveis não incluíam o que as gerações prévias chamavam filosofia, nem mesmo as ferramentas conhecidas como o trivium, a lógica ou a dialética. O que era estudado em casa era simples gramática, o que incluía familiaridade com os clássicos da prosa e da poesia latina, e rudimentos de retórica ou estilo. Os produtos compostos nos salões episcopais de alta cultura eram primariamente sermões, enumerações de milagres e história.

Assim, começou o período de dormência da filosofia medieval. Com raríssimas exceções, houve pouco nesses séculos que hoje nós identificaríamos como “filosófico”, e, talvez mais importante, não havia muito que Agostinho ou Boécio teriam chamado filosofia tampouco. Em vez disso, a inspiração e o veículo para o aprendizado eram assentados com uma nova cultura dos monastérios. Quando o pensamento abstrato especulativo e analítico emergiu novamente no fim do século XI, todavia, emergiu no ambiente monástico. (…)

Com a exceção da erudição do período Carolíngeo, a cultura monástica ocidental na Idade Média central manteve um estudo direcionado para a ascese, capaz de produzir maravilhosas peças de canto, oração e liturgia, mas dificilmente trabalhos de importância especulativa. (…)

As raízes da transformação social ocidental posterior têm origem no século X no que viria a tornar-se uma revolução econômica na Europa medieval. Por uma combinação de inovações tecnológicas e uma reconfiguração da estrutura social que estava anteriormente amarrada ao feudalismo, o noroeste da Europa evoluiu entre 900 e 1100 de uma paisagem rural esparsamente povoada de agricultura de subsistência a uma topografia mais complexa de excesso de produção, população rapidamente crescente, emergentes cidadelas (ou mesmo pequenas cidades), e o início de um mercado significante.

Foi essa transformação fundamental, de uma sociedade imóvel para uma dinâmica, que explica o avanço do Ocidente no fim da era medieval e no início dos tempos modernos. Sinais internos dessa nova ordem podem ser vistos no revigoramento das monarquias reais na França e na Inglaterra, na aparição de comunas urbanas auto-governadas na Itália, e na reforma da hierarquia eclesiástica da Igreja, evidenciada na pressão pelo celibato clerical e na maior independência do controle secular. Externamente, a mudança anunciou-se numa postura mais agressiva em relação aos vizinhos da Europa Latina. A Reconquista – a expansão militar dos principados cristãos do Norte na Espanha muçulmana – estava acontecendo pelo meio do século XI. Em 1054 um Papado mais seguro e autônomo em Roma excomungou o patriarca de Constantinopla. O cisma com a Ortodoxia Oriental remonta a esse tempo. Algo mais famoso aconteceu em 1095, quando começou a primeira das massivas, e por duzentos anos periódica, invasões de soldados ocidentais visando fortuna e salvação no Oeste mediterrâneo, as Cruzadas. (…)

Com relação à filosofia, esses eventos significaram o nascimento de uma sociedade na qual os homens cultos eram livres para direcionar seus esforços à análise e à especulação por seus próprios esforços (…). Sintomas de novos hábitos mentais e de um tipo de cultura literária inteiramente diferente de qualquer outro apareceram nas instituições de ensino e de produção literária mais características da Europa Ocidental na Idade Média: os monastérios. Eles não estiveram apenas na vanguarda das devoções religiosas e da escrita histórica característicos da Idade Média do segundo período, mas também proveram as fundações pedagógicas para essas áreas. Como indicado acima, essa fundação incluía gramática e retórica, mas não a lógica. Começando no século XI, alguns dos mais capazes monges começaram a procurar entre os textos lógicos de Aristóteles e Boécio, que estavam conservados em suas livrarias, por algo que sentiam faltar em sua educação. (…)

Este novo modelo de busca intelectual reviveu uma forma de discurso por muito tempo ausente do Ocidente. Também alterou o caráter desse discurso. Com sua ênfase excepcional na lógica, infundiu a erudição da Alta Idade Média com uma visão profundamente analítica. Em seus diálogos sobre a verdade, o livre-arbítrio ou a queda do Demônio, mesmo os devotos contemplativos professores medievais podem soar mais como mestres universitários do fim do século XIX do que como os medievais da primeira fase. A necessidade pela lógica assumiu um lugar central no fim do século XI e no início do XII com uma velocidade estonteante. (…)

Agora a lógica encontrava-se no coração de todo o conhecimento e constituía o paradigma para a investigação em todos os campos. Começando com a leitura e exposição literal na classe de aula dos textos fundamentais em um assunto, um sistema formal de questões e respostas aparecia, a partir do qual os estudantes poderiam tanto exercitar suas habilidades lógicas em debate e por as palavras das autoridades sob as lentes da análise crítica, avançando na direção de uma maior compreensão, ganhando consistência de exposição e maior claridade de entendimento. Tal método de sala de aula de análise, debate e resolução rapidamente tornou-se padrão entre as escolas emergentes. As mais importantes disciplinas do ensino da Alta Idade Média começaram a tomar forma, cristalizadas à volta de novos livros-texto recentemente compostos e rapidamente adotados universalmente e eram estruturadas como coleções de debates de pontos que tocavam todos os aspectos significantes do assunto tratado.

McGRADE, A.S. The Cambridge Companion to Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

Publicidade

32 comentários sobre “A filosofia na Idade Média – por A. S. McGrade

  1. legal,e muito grade.Mais e muito importante para o vestibular………….
    beijos; e leem bem muito…………

  2. Muito bom, o texto grande não é problema, não ser para quem não gosta de estudar. Muito obg por me passar seu conhecimento.

  3. além de ser grande é muito legal e importante, me ajudou muito no trabalho de colégio. obrigada por nos mostrar seus conhecimentos!

  4. Texto ótimo, não consegui terminar de ler, por que esse fundo escuro dói a vista.

  5. quando falamosda filosofia medieval temos que ter em atencao a idade media . na idade media os filosofos dedicavamtanto a filosofia como a teologia

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s