A Escola de Mileto

Os primeiros filósofos eram naturais da cidade de Mileto. Foram chamados por Aristóteles, tempos depois, de “físicos”, porque o problema central com o qual lidavam era a questão da physis. Atualmente, damos aos primeiros filósofos a qualidade de “pré-socráticos”, pois investigam questões diferentes das que passaram a ser abordadas pela filosofia após Sócrates. As mais importantes perguntas que os pré-socráticos faziam eram:

– Como surgiu o cosmos?

– Como a physis é ordenada?

– Quais são os elementos fundamentais da physis, ou seja, qual é o arché?

A resposta apresentada por cada um dos três principais filósofos milesianos foi baseada na idéia de que a physis tinha um arché unitário. Em outras palavras, um único princípio deve ser utilizado para explicar todas as coisas no cosmos.

Grande parte dos textos dos primeiros filósofos milesianos se perdeu no tempo. A maior fonte de conhecimento sobre suas teses vem de filósofos e historiadores posteriores que relataram as posições defendidas pelos filósofos anteriores.

Esses relatos foram chamados doxografia, palavra que deriva de doxa, que significa opinião na língua grega, e graphia, que significa escrita. Então, doxografia de um filósofo é o conjunto de opiniões sobre a filosofia de um determinado filósofo da Antiguidade. A doxografia é a maior (e, muitas vezes, a única) fonte de conhecimento dos filósofos da Escola de Mileto: Tales, Anaximandro e Anaxímenes.

Tales (624-546 a.C.) foi considerado o primeiro de todos os filósofos. Em contraste com as antigas explicações mitológicas, Tales tentou encontra explicações naturalistas para o mundo, sem referência a coisa alguma sobrenatural. Explicou, por exemplo, os terremotos por meio da teoria de que a Terra flutua na água; os terremotos seriam causados pelo encontro da Terra com ondas.

Tales procurava pelo “princípio” de todas as coisas, ou seja, pelo arché. O arché seria aquilo de que todas as coisas seriam compostas, em que todas as coisas subsistem e para que todas as coisas tendem.

Segundo a cosmologia de Tales, a arché seria a água. Todas as coisas seriam compostas por água.

Devido ao fato de ter sido o primeiro pensador a procurar um princípio natural observável (a água) para explicar todas as coisas, muitas vezes Tales é considerado o primeiro cientista.

Contudo, provavelmente o que Tales tinha em mente com a idéia de água não era o mesmo que nós, que pensamos na substância H2O. Provavelmente o que Tales tinha em mente era algo como o elemento líquido, o princípio líquido como a fonte de todas as coisas na natureza.

Este elemento ou princípio líquido, considerado de modo unitário, seria a fonte, o fim e o substrato de todos os seres individuais e múltiplos.

Assim, o princípio líquido universal é aquilo de que todas as coisas surgem, em que todas as coisas existem e para o que todas as coisas se encaminham.

Evidentemente, esta idéia, embora seja naturalista, pois o princípio líquido é parte da natureza, não é materialista. Tales não era um filósofo para quem a única realidade era material; na verdade, a realidade substancial é natural, é una, mas não é material.

Note-se que não-material não significa sobrenatural. Mesmo quando diz que o ímã tem alma, não utiliza aqui um princípio sobrenatural; apenas justifica o movimento do ímã na direção do ferro (ou o contrário) por um princípio natural, o princípio da vida (a alma), pois apenas o que tem vida poderia mover-se autonomamente. Embora não-material, o princípio fundamental é parte da physis.

Neste sentido, podemos também compreender a tese mais conhecida de Anaximandro (610-546 a.C.). Aluno de Tales, professor de Anaxímenes e de Pitágoras, foi o primeiro filósofo a escrever seus estudos, embora apenas um fragmento de seu trabalho ainda exista.

Anaximandro seguiu a mesma linha de Tales e foi além.  Afirmou que a natureza é regida por leis, como as sociedades humanas, e nada que cause distúrbio ao balanço da natureza pode durar muito tempo.

Suas contribuições à filosofia envolvem várias disciplinas. Na astronomia, tentou descrever a mecânica dos corpos celestes em relação à Terra. Também desenhou um mapa do mundo que contribuiu grandemente para o avanço da geografia. Esteve envolvido com a política de Mileto e foi enviado como líder de uma de suas colônias.

Contudo, foi a respeito do princípio fundamental que Anaximandro fez suas mais duradouras contribuições para a filosofia.

Ao contrário de Tales, que propôs que o arché fosse o princípio líquido, ou seja, a água, Anaximandro defendeu que o princípio não era líquido, nem sólido, nem gasoso (mesmo que líquido, sólido ou gasoso fossem tomados como princípios muito gerais e quase metafóricos). Sua proposta foi de que o arché não pode ter limite, determinação nem forma.

Afinal, se o arché tiver forma, todas as coisas criadas dele terão necessariamente a forma do arché. Contudo, se o arché não tiver forma, limite ou determinação, pode vir a se tomar a forma, ter o limite e determinar-se como qualquer outra coisa.

Anaximandro deu a esse arché indefinido, indeterminado e ilimitado o nome ápeiron. O ápeiron está presente em todos os lugares; assim como o líquido para Tales, é do ápeiron que tudo surgiu, é no ápeiron que tudo existe e para o apeíron tudo segue – o ápeiron é o início, o meio e o fim.

Aqui torna-se evidente que estamos diante de algo novo: o ápeiron é um princípio natural que nos lembra a idéia de Deus – num momento em que ninguém ainda havia pensado em Deus desse modo.

Mesmo a primeira religião monoteísta, o judaísmo, não tinha ainda naquela época adotado de modo inequívoco a concepção da tradição sacerdotal hebraica de um Deus universal, onisciente, onipresente e onipotente, a concepção que ficaria consagrada após alguns séculos.

Em outras palavras, a concepção racional e naturalista de Anaximandro a respeito do arché precedeu e, possivelmente, influenciou a concepção de Deus que se teria posteriormente na Grécia, no judaísmo e no cristianismo. Estamos diante de uma concepção naturalista de Deus – um Deus desumanizado, desantropomorfizado, universal, fonte, fim e substrato de todos os seres; em suma, estamos diante da primeira concepção de um Ser que puramente É – conceito que a Escola Eleata desenvolveu mais profundamente ainda nos primórdios da filosofia grega.

Anaxímenes (585-525 a.C.) foi aluno de Anaximandro. Suas idéias são próximas à dos dois outros milesianos, mas, em lugar do princípio líquido ou do ápeiron, era o ar a ser tomado como arché.

Esta idéia parece, à primeira vista, um retrocesso de um princípio bastante complexo, como o ápeiron, de volta a um princípio material (como aparentemente é a água). Contudo, assim como a água a que Tales faz referência não é o que nós chamamos comumente água, o que Anaxímenes chama ar não é o que nós chamamos ar. Anaxímenes não se referia à mistura química gasosa entre o oxigênio, o nitrogênio e o gás carbônico: o ar, para os gregos, era considerado algo infinito que preenche todos os lugares em todo o cosmos.

Além disso, tanto para os gregos quanto para talvez todas as civilizações da Antiguidade, o ar, o sopro, o hálito, era considerado o princípio vital. Isso parece evidente: a respiração, ou a falta dela, indica se um ser vivo vive ou morre; quando um bebê nasce, precisa começar a respirar; a morte vem frequentemente acompanhada de um último suspiro; e é muito comum na religiosidade antiga que a vida seja dada pela divindade com um sopro vital (“Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”; Gn 2,7); na própria tradição judaica e cristã, Deus é às vezes visto como uma brisa ou um vento suave (“e depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo o murmúrio de uma brisa suave. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta”; I Reis 19,12-13).

Isso significa que também Anaxímenes propõe um princípio natural que não é, a despeito do que possa parecer à primeira vista, material. Pode-se dizer que este princípio, assim como o proposto por Tales, tem uma manifestação material – mas o princípio uno e universal não o é. Ainda assim, é um princípio físico, ou imanente.Ou seja: ainda que possamos fazer referência a um “sopro divino” na tese de Anaxímenes, esse “divino” é constitutivo da physis na própria physis. Em outras palavras, o divino, para Anaxímenes, é natural.

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A filosofia de Heráclito de Éfeso

Heráclito (535 – 475 a.C.) era membro de uma família importante politicamente em Éfeso, mas recusou-se a disputar o poder.

É considerado um dos mais eminentes pensadores pré-socráticos. Muitos fragmentos de seu livro, “Sobre a Natureza”, foram reproduzidos pelos doxógrafos. A partir desses fragmentos é possível ter uma noção mais ou menos precisa das idéias de Heráclito – idéias que foram extremamente influentes entre os pensadores que buscavam compreender um princípio universal para além da transitoriedade das coisas particulares.

A característica mais evidente dos escritos de Heráclito é a presença de um grande orgulho e de desprezo. Despreza muitos indivíduos considerados importantes pelos gregos, como Homero, Hesíodo e Pitágoras.

Seu fragmento mais obscuro,

“Deste logos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir quer tão logo tenham ouvido; pois, tornando-se todas as coisas segundo esse logos, a inexperientes se assemelham embora experimentando-se em palavras e ações tais quais eu discorro segundo a natureza distinguindo cada coisa e explicando como se comporta. Aos outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem dormindo”

é representativo desse desprezo. Nele, Heráclito afirma que:

1. o Logos (ou seja, a lei universal que rege todos os acontecimentos particulares e que é o fundamento da harmonia de todas as coisas) sempre existiu;

2. os que estão prestes a “ouvir” ou que tenham ouvido o Logos ficam descompassados, isto é, deslocados entre os outros homens;

3. isto deve-se ao fato de que os que ouvem o Logos e, conseqüentemente, passando a perceber todas as coisas a partir do Logos, parecem inexperientes em relação a tudo, porque tudo precisam reaprender; como diz Heráclito em outro fragmento, “o homem como uma criança ouve o divino, tal como a criança ao homem”;

4. esse aprendizado significa a distinção correta e a explicação do comportamento de cada coisa;

5. os outros homens, que não ouvem o Logos, vivem como se estivessem dormindo, não sendo capazes de perceber a verdadeira realidade – e, segundo Heráclito em outro fragmento, “não se deve agir nem falar como os que dormem”.

Heráclito pensava justamente nos homens que não ouvem o Logos ao dizer que “se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os bois, quando encontram ervilha para comer” e que “asnos prefeririam palha a ouro”.

As idéias mais importantes de Heráclito são relativas ao problema geral abordado pelos pré-socráticos, que é o problema cosmológico. Contudo, Heráclito não faz como Tales e Anaxímenes, que buscavam conhecer o arché, o princípio fundamental da physis. Heráclito estava preocupado em tentar compreender o logos, isto é, a razão universal invisível que ordena todas as coisas. Em certo sentido, a posição de Heráclito tem semelhanças com a de um dos milesianos: a de Anaximandro, que considerava que o arché é um infinito, ilimitado e indeterminado que determina todas as coisas particulares na physis. As idéias de Heráclito também não estão muito distantes das da escola pitagórica, que buscava compreender a harmonia quantitativa oculta sob a aparente multiplicidade qualitativa das coisas.

Heráclito formula a doutrina da unidade do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. Essa idéia é exemplificada pelo fato de que os opostos têm sempre uma propriedade em comum que os unifica, ou seja, pertencem ao mesmo domínio do ser.

Isso significa também que a realidade única é a junção de todas as múltiplas percepções, e que a totalidade é produto de todas as coisas individuais.

Daí deriva-se outra tese importante de Heráclito: a de que todos os seres são dinâmicos, não há seres que permaneçam idênticos a si mesmos. Isso significa que mesmo o logos fundamental, a despeito de ser a condição oculta da harmonia do cosmos, é também eterna mudança.

É neste sentido que Heráclito afirma que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio: o rio muda a cada instante, não sendo idêntico a si mesmo, e, portanto, é um rio diferente a cada momento; e nós somos do mesmo modo.

Em suma: a posição de Heráclito é que poucos homens tentam compreender o logos, que é a unidade racional universal que ordena, harmoniza e permite explicar todas as coisas particulares, que são, por sua vez, interminável mudança e confronto de opostos.

Leia também o post: A Escola Eleata.