A Escola Eleata

Assim como a Escola de Éfeso, a Escola Eleata, ou Escola Italiana, teve muita influência no pensamento posterior.

Os três mais importantes filósofos de Eléia foram Xenófanes (570 – c. 470 a.C.), Parmênides (510 – 440 a.C.) e Zenão (490 – 430 a.C.); os três abordaram o mesmo problema e deram respostas aproximadas. O problema abordado foi a questão da permanência e da identidade diante da mudança dos seres, ou a questão da unidade e da universalidade do Ser diante da multiplicidade dos seres particulares.

Este problema foi também abordado por Heráclito. A resposta de Heráclito foi ligeiramente diferente da apresentada pelos eleatas, embora a tradição da história da filosofia muitas vezes tenha considerado as teses de Heráclito não apenas um pouco distantes, mas opostas às da Escola de Eléia.

A resposta ao problema a respeito da natureza da realidade – se a realidade é una ou múltipla, se é estável ou dinâmica – foi dada, do mesmo modo que na filosofia de Heráclito, por meio da proposta de separação entre a natureza visível múltipla e variável e a realidade racional.

A grande novidade dos eleatas, contudo, é a atribuição do Um que abarca toda a multiplicidade dos seres ao Absoluto imutável. Para Heráclito, a realidade do Logos não era o Absoluto imutável; era também mudança.

O primeiro dos eleatas, Xenófanes, não era natural de Eléia, mas de Colófão. Contudo, por ter ido viver em Eléia, onde foi professor de Parmênides e ficou conhecido, além de ter influenciado toda a tradição eleata, é tratado como se fosse o primeiro dos eleatas.

Xenófanes propôs que o único princípio e ser de todas as coisas é uma unidade, um inteiro; essa unidade não pode ser qualificada, pois qualquer qualificação excluiria seu contrário, o que tornaria a unidade incompleta, e, consequentemente, menor que um, menos que o inteiro. Então, a unidade não pode ser limitada nem ilimitada, nem móvel nem estática.

Uma idéia inovadora de Xenófanes é que foi o primeiro a identificar essa unidade do ser que tudo abarca a Deus, a um Deus único e uno. Esse Deus é necessário, e, consequentemente, não pode ter sido criado por nada, sendo incriado desde sempre; como Deus é o ser absoluto, não pode ter sido criado por outro ser, e muito menos por um não-ser. Além disso, Deus não tem atributos humanos; os homens atribuem a Deus características suas (do mesmo modo que outro animal atribuiria a Deus características próprias de sua espécie). Portanto, Xenófanes defendeu, pela primeira vez, uma concepção filosófica de Deus: o ser necessário, uno e absoluto, sem começo nem fim no tempo ou no espaço, no qual todas as coisas particulares têm seu ser. Essa concepção foi e é extremamente importante na história do pensamento: é este o Deus sugerido por Aristóteles por meio da figura do primeiro motor; é este o Deus que as cinco vias de Tomás demonstram; é neste Deus que os filósofos teístas do século XVIII acreditam; é esta a concepção de Deus compatível inteiramente com a ciência contemporânea.

O segundo dos filósofos eleatas, Parmênides, foi aluno de Xenófanes e de suas idéias partiu para desenvolver seu próprio pensamento.

A primeira tese de Parmênides é que só uma coisa é, ou seja, só uma coisa tem a propriedade de ser, de existir: somente o Ser é. Isso significa que todas as coisas que são, que existem, compõem uma unidade, pois são no Ser. Contudo, obviamente há uma multiplicidade de coisas que são; essa multiplicidade é evidente pelos próprios fenômenos, ou seja, pelos próprios conhecimentos advindos dos sentidos. Parmênides concilia essa dupla realidade propondo que existe uma realidade formal única, o Ser; e que existe uma realidade fenomênica múltipla, composta por todas as coisas que são, ou seja, os seres.

Para Parmênides, o Ser é equivalente à concepção de Deus de Xenófanes, e é o único Ser verdadeiro; todas as outras coisas são enquanto coisas nas quais subsiste o Ser imóvel e uno. Isso significa que o movimento e a multiplicidade são o que não é o Ser nas coisas; ora, o não-ser não é, o não-ser não existe; consequentemente, a aparência de multiplicidade e movimento que temos por meio dos sentidos não é parte do Ser, e não existe realmente.

Percebe-se aqui que Parmênides tem uma posição surpreendentemente próxima à de Heráclito, que afirma que a realidade é o logos e que as pessoas geralmente não conhecem o logos, mas permanecem no mundo da multiplicidade e da mudança, um mundo de sonhos e não de vigília. Mas Parmênides tem, ao mesmo tempo, uma posição em parte diferente daquela de Heráclito. Enquanto Heráclito segue o caminho da conciliação dos opostos para chegar à unidade, propondo que da aparente dualidade se chega ao Uno, ao logos, Parmênides segue o caminho de propor a unidade do Ser imediatamente: o Ser não é divisível em opostos, o Ser simplesmente é. Este também é o sentido da discordância de Parmênides em relação aos pitagóricos: do mesmo modo que Heráclito, os pitagóricos afirmavam que da conciliação dos opostos se chega à unidade, ou seja: que a realidade é divisível, por ser número. Para os eleatas, contudo, a realidade simplesmente não é número, não é absolutamente divisível.

O terceiro grande filósofo eleata foi Zenão. Aluno de Parmênides, defendeu as idéias de seu mestre contra as dos pitagóricos. É conhecido pelos paradoxos com os quais nega a realidade do movimento.

Os paradoxos de Zenão são argumentos com os quais demonstra que é impossível que a realidade seja descontínua, múltipla e divisível como queriam os Pitagóricos, e que, portanto, a realidade deveria ser una, contínua e indivisível, o que era a tese de sua Escola. Na doxografia abaixo seus paradoxos são apresentados por Aristóteles.

TEXTOS DE APOIO

Xenófanes (570-470 a.C.)

Sobreviveram fragmentos de um poema, no qual criticava e satirizava várias idéias, incluindo a crença em deuses antropomórficos e a veneração dos gregos ao atletismo.

DOXOGRAFIA

[Fala o Estrangeiro de Eléia.] É uma espécie de mito que cada um parece contar-nos, como se fôssemos crianças. Um dizendo que são três os seres, mas combatem às vezes entre si alguns deles, e outras, tornados amigos, casam-se, têm filhos e os alimentam; outro diz que há dois, úmido e seco ou quente e frio, fá-los coabitar e casar-se. E entre nós a gente eleática, a começar de Xenófanes e ainda de mais longe, não se vê senão a unidade no que chamamos de “todas as coisas”, e assim nos explica em seus mitos.

(PLATÃO. Sofista)

Pois Parmênides parece referir-se ao um, segundo o conceito, e Melisso ao um, segundo a matéria. Por isso aquele diz que o um é limitado, e este, que é ilimitado. Xenófanes, o primeiro a postular a unidade (de Parmênides diz-se que foi discípulo dele), nada esclareceu, nem parece que vislumbrou nenhuma dessas duas naturezas, mas, dirigindo o olhar a todo o céu, diz que o um é o deus. Portanto, como dissemos, devem ser deixados na presente investigação, sobretudo dos dentre eles, por serem um tanto ingênuos, a saber, Xenófanes e Melisso.

(ARISTÓTELES. Metafísica)

FRAGMENTOS de XENÓFANES

Muitíssimas vezes mencionaram atos ímpios dos deuses, roubo, adultério e fraude mútua.”

Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm.”

Os egípcios dizem que os deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos.”

Parmênides (510-440 a.C.)

Chegaram ao nosso tempo alguns fragmentos de um poema dividido em duas partes. Na primeira, O caminho da verdade, explica como a realidade é uma; a mudança é impossível; a existência é eterna, uniforme e imutável. Na segunda parte, O caminho da opinião, explica o mundo de aparências, que é falso e enganoso. Essas ideias influenciaram fortemente Platão.

DOXOGRAFIA

Parmênides parece estar vinculado à unidade formal, enquanto Melisso, à unidade material. Parmênides parece, neste ponto, raciocinar com mais penetração. Julgando que fora do ser o não-ser nada é, forçosamente admite que só uma coisa é, a saber, o ser, e nenhuma outra… Mas, constrangido a seguir o real, admitindo ao mesmo tempo a unidade formal e a pluralidade sensível, estabelece duas causas e dois princípios: quente e frio, vale dizer, Fogo e Terra. Destes dois princípios ele ordena um (o quente) ao ser, o outro ao não-ser. Examinando a verdade nos seres, como seres admitia só as coisas sensíveis.

(ARISTÓTELES. Metafísica)

Uns negam absolutamente geração e corrupção, pois nenhum dos seres nasce ou perece, a não ser em aparência para nós. Tal é a doutrina da escola de Melisso e de Parmênides, doutrina que, por excelente que seja, não pode ser tida como fundada sobre a natureza das coisas.. Pois, se existem seres engendrados e absolutamente imóveis, pertencem mais a ciência outra que não à da natureza, e anterior a ela. Mas estes filósofos, ao conceberem a existência apenas para a substância das coisas sensíveis, crendo plenamente nisso, e os primeiros que sem tais naturezas imóveis não pode haver nem conhecimento nem sabedoria, não faziam mais que transferir aos seres sensíveis as razões só válidas para as realidades. Partindo desses raciocínios, deixando de lado o testemunho dos sentidos e negligenciando-o sob o pretexto de que se deve seguir a razão, alguns pensadores ensinam que o todo é um, imóvel e ilimitado; pois o limite só poderia limitar em relação ao vazio. Tais são as causas pelas quais esses pensadores desenvolveram as teorias sobre a verdade. Certamente, segundo este raciocínio, parece suceder assim com estas coisas; mas, se se tomam em conta fatos, semelhante opinião parece uma loucura.

(ARISTÓTELES. Do Céu)

Segundo Alexandre, Teofrasto, no primeiro livro de sua Física, relata assim o raciocínio de Parmênides: “O que está fora do ser não é ser; o não-ser é nada; o ser, portanto, é um”. E Eudemo conta da seguinte forma: “O que está fora do ser não é ser; e só de uma maneira se chama o ser; um, portanto, é o ser”. Se Eudemo escreveu isso em alguma outra parte com tanta sabedoria, não sei dizer. Mas nos Físicos, a respeito de Parmênides, escreveu o seguinte, donde é igualmente possível deduzir o que foi dito: “Parmênides não parece demonstrar que um é o ser, nem se alguém com ele concordaria em chamar o ser de uma forma, a não ser o que foi revelado nele de cada um como o homem dentre os homens”.

E dando em detalhe as palavras, a palavra do ser subsiste em todas as coisas como uma e ela mesma, assim, como a do animal nos animais. Da mesma maneira, se todos os seres fossem belos e nada fosse tomar o que não é belo, mas belas serão todas as coisas, e na verdade não é um só o belo mas muitos (pois a cor será bela em relação à familiaridade, aos costumes ou por outro motivo qualquer), assim também os seres todos serão, mas não um nem o mesmo; pois um é a água e outro, o fogo. Por conseguinte, ninguém leve a mal se Parmênides seguiu palavras não merecedoras de fé e se foi enganado pelas que então ele não soube explicar claramente – pois ninguém o disse de muitos modos, e foi Platão o primeiro que introduziu o duplo sentido, nem o sentido em si nem o por casualidade. Parece que ele foi totalmente enganado pelas palavras. É isso que foi observado das suas palavras e contradições e o raciocinar; pois não concordava, se não parecesse forçoso. Os antecessores, porém, o afirmaram sem provas.

(SIMPLÍCIO. Física)

FRAGMENTOS de PARMÊNIDES

SOBRE A NATUREZA

Necessário é o dizer e pensar que (o) ente é; pois é ser,

e nada não é; isto eu te mando considerar.

Pois primeiro desta via de inquérito eu te afasto,

mas depois daquela outra, em que mortais que nada sabem

erram, duplas cabeças, pois o imediato em seus

peitos dirige errante pensamento; e são levados

como surdos e cegos; perplexas, indecisas massas,

para os quais ser e não ser é reputado o mesmo

e não o mesmo, e de tudo é reversível o caminho.

* * *

Não, impossível que isso prevaleça, ser o não ente.

Tu porém desta via de inquérito afasta o pensamento;

nem o hábito multiexperiente por esta via te force;

exercer sem visão um olho, e ressoante um ouvido,

e a língua, mas discerne em discurso controversa tese

por mim exposta.

Só ainda o mito de uma via

resta, que é; e sobre esta índicios existem,

bem muitos, de que ingênito sendo é também imperecível,

pois é todo inteiro, inabalável e sem fim;

nem jamais era nem será, pois é agora todo junto,

uno, contínuo; pois que geração procurarias dele?

Por onde, donde crescido? Nem de não ente permitirei

que digas e pense; pois não dizível nem pensável

é que não é; que necessidade o teria impelido

a depois ou antes, se do nada iniciado, nascer?

Assim ou totalmente necessário ser ou não.

Nem jamais do que em certo modo é permitia força de fé

nascer algo além dele; por isso nem nascer

nem perecer deixou justiça, afrouxando amarras,

mas mantém; e a decisão sobre isto está no seguinte:

é ou não é; está portanto decidido, como é necessário,

uma via abandonar, impensável, inominável, pois verdadeira

via não é, e sim a outra, de modo a se encontrar e ser real.

E como depois pereceria o que é? Como poderia nascer?

Pois se nasceu, não é, nem também se um dia é para ser.

Assim geração é extinta e fora de inquérito perecimento.

Nem divisível é, pois é todo idêntico;

nem algo em uma parte mais, que o impedisse de conter-se,

nem também algo menos, mas é todo cheio do que é,

por isso é todo contínuo; pois ente a ente adere.

Por outro lado, imóvel em limites de grandes liames

é sem princípio e sem pausa, pois geração e perecimento

bem longe afastaram-se, rechaçou-os fé verdadeira.

O mesmo e no mesmo persistindo em si mesmo pousa.

e assim firmado aí persiste; pois firme a Necessidade

em liames o mantém, de limite que em volta o encerra,

para ser lei que não sem termo seja o ente;

pois é não carente; não sendo, de tudo careceria.

O mesmo é pensar e em vista do que é pensamento.

Pois não é sem o que é, no qual é revelado em palavra,

acharás o que pensar; pois nem era ou é ou será

outro fora do que é, pois Moira o encadeou

a ser inteiro e imóvel; por isso tudo será nome

quanto os mortais estatuíram, convictos de ser verdade,

engendrar-se e perecer, ser e também não,

e lugar cambiar e cor brilhante alterar.

Então, pois limite é extremo, bem terminado é,

de todo lado, semelhante a volume de esfera bem redonda,

do centro equilibrado em tudo; pois ele nem mesmo algo maior

nem algo menor é necessário ser aqui ou ali;

pois nem não-ente é, que o impeça de chegar

ao igual, nem é que fosse a partir do ente

aqui mais e ali menos, pois é todo inviolado;

pois a si de todo igual, igualmente em limites se encontra.

Neste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento

sobre a verdade; e opiniões mortais a partir daqui

aprende, a ordem enganadora de minhas palavras ouvindo.

Pois duas formas estatuíram que suas sentenças nomeassem,

das quais uma não se deve – no que estão errantes -;

em contrários separaram o compacto e sinais puseram

à parte um do outro, de um lado, etéreo fogo de chama,

suave e muito leve, em tudo o mesmo que ele próprio

mas não o mesmo que o outro; e aquilo em si mesmo puseram

em contrário, noite sem brilho, compacto denso e pesado.

A ordem do mundo, verossímil em todos os pontos, eu te revelo,

para que nunca sentença de mortais te ultrapasse.”

Zenão (490-430 a.C.)

DOXOGRAFIA

Por outro lado, a dificuldade que Zenão aponta, dizendo que, “se o lugar é alguma coisa, ele está em alguma coisa”, não é difícil resolver; pois nada impede que em outra coisa esteja o primeiro lugar, mas seguramente não como naquele lugar etc. A dificuldade de Zenão exige uma reflexão; com efeito, se todo ser está num lugar, é claro que haverá também um lugar do lugar, e isto vai ao infinito. A isto mesmo parece levar também à dificuldade de Zenão. De fato, julga ele que todo ser está em algum lugar; se o lugar é dos seres, onde estaria ele? Certamente em outro lugar, e aquele, por sua vez, em outro, e assim por diante… Para Zenão, diremos que o “onde” se diz de muitas maneiras: se ele julgou estarem os seres num lugar, não julgou bem; pois ninguém diria que saúde, coragem e outras coisas mil estão num lugar; nem mesmo, é claro, sendo o lugar tal como se afirma. Se de outra forma se diz “o onde”, também o lugar seria onde; ora, o limite do corpo é o onde do corpo; pois é o extremo.

(ARISTÓTELES. Física)

Há quatro argumentos de Zenão a respeito do movimento que oferecem dificuldades a quem queira resolvê-las.

O Primeiro Argumento: A impossibilidade do movimento é deduzida do fato de que o móvel transportado deve chegar primeiro à metade antes de alcançar o termo; sobre isso discorremos nos argumentos anteriores. Por isso o argumento de Zenão supõe, sem razão, que os infinitos ou tocados sucessivamente num tempo infinito. Com efeito, a extensão e o tempo, e em geral todo conteúdo, chamam-se infinito em dois sentidos, seja em divisão, seja com relação aos extremos. Sem dúvida, os infinitos em quantidade não podem ser tocados num tempo finito; mas os infinitos em divisão, sem, uma vez que o próprio tempo também é infinito dessa maneira. Por conseguinte, é no tempo infinito e não no tempo finito que se pode percorrer o infinito, e, se se tocam infinitos, é por infinitos, não por finitos. Temos muitos argumentos contrários à opinião comum, como a de Zenão, que não admite mover-se ou atravessar o estádio.

O Segundo Argumento: é o que leva o nome de Aquiles. É o seguinte: o mais lento na corrida jamais será alcançado pelo mais rápido; pois o que persegue deve sempre começar por atingir o ponto donde partiu o que foge. É o mesmo argumento que o da dicotomia: a única diferença está em que, se a grandeza sucessivamente acrescentada é bem dividida, não o é mais em dois.

O Terceiro Argumento: Pretende que a flecha, ao ser projetada, esteja em repouso. É a consequência da suposição de que o tempo seja composto de instantes; se se recusa esta hipótese, não há mais o silogismo. Zenão comete um paralogismo: pois, se toda coisa – diz ele – está num dado momento em repouso ou em movimento (mas nada está em movimento) quando está num espaço igual a si mesmo, o que é projetado está sempre no momento presente (e toda coisa num lugar a si mesmo está no momento presente), a flecha projetada está sempre imóvel.

O Quarto Argumento: Trata de massas iguais que se movem em sentido contrário no estádio ao longo de outras massas iguais, umas a partir do fim do estádio, outras do meio, com velocidades iguais; a consequência pretendida é a de que metade do tempo seja igual a seu dobro. O paralogismo consiste em se pensar que uma grandeza igual, com velocidade igual, se movimente num tempo igual, tanto ao longo do que está em movimento como ao longo do que está em repouso. Mas isso é falso. Sejam AA as de massas iguais que estão imóveis; BB, as que partem do meio dos AA e são iguais a essas em número e tamanho; CC, as que partem da extremidade, iguais àquelas em número e tamanho e de mesma velocidade que as dos BB. Consequências: o primeiro B está na extremidade ao mesmo tempo que o primeiro C, visto que se movem paralelamente. Do outro lado, os CC percorreram todo o intervalo ao longo de todos os BB, e os BB, metade do intervalo ao longo dos AA; por conseguinte, só metade do tempo; com efeito, para os grupos tomados dois a dois, há igualdade do tempo de passagem diante de cada A. Mas ao mesmo tempo os BB passaram diante de todos os CC; pois o primeiro B e o primeiro C estão, ao mesmo tempo, em extremidades opostas, sendo o tempo para cada um dos BB – diz ele – o primeiro que para os CC, porque os dois passam em tempo igual ao longo dos AA. Este é o argumento, e o mais conveniente, como diz Eudemo, pelo fato de o paralogismo ser evidente, pois as massas que se movem em sentido contrário umas às outras afastam-se com dupla distância no mesmo tempo em que o que se move ao longo do que está imóvel se afasta pela metade, e será de igual velocidade à daquelas.

(ARISTÓTELES. Física)

FRAGMENTOS de ZENÃO

Se o ser não tivesse grandeza, também não poderia existir, mas, se existe, necessariamente cada parte tem certa grandeza e espessura, e distância uma da outra. E a respeito da parte que está diante dela o mesmo se diz. Pois esta também terá grandeza e uma outra estará diante dela. É o mesmo, então, dizer isso uma vez apenas e dizê-lo sempre. Pois nenhuma parte do ser será limite extremo, nem estará uma parte sem relação com outra. Assim, se múltiplas são as coisas, necessariamente são pequenas e grandes; pequenas a tal ponto que não têm grandeza, grandes a tal ponto que são infinitas.”

Diz Zenão que uma coisa que não tem grandeza e espessura, nem massa, não poderia existir. Pois, se fosse acrescentada a uma outra coisa, em dada a aumentaria; pois, se uma grandeza que nada é a uma outra se acrescenta, nada pode ganhar em grandeza esta última. E assim já o acrescentado nada seria. Mas se, subtraída uma grandeza, a outra em nada diminuir, e, ao contrário, acrescentada uma, a outra não aumentar, é evidente que o acrescentado nada era, nem o subtraído.”

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A questão de Lógica no 1o exame de qualificação da UERJ – vestibular 2016

Hoje de manhã, foi realizado o 1o exame de qualificação do vestibular de 2016 da UERJ.

Fui ver agora a prova. Uma das questões (a de número 14) me chamou a atenção. Ela diz:

Antônio Prata, ao comentar o ataque ao jornal Charlie Hebdo, construiu uma série de variações do argumento típico do método dedutivo, conhecido como “silogismo” e normalmente organizado na forma de três sentenças em sequência.

A organização do silogismo sintetiza a estrutura do próprio método dedutivo, que se encontra melhor apresentada em:

(A) premissa geral – premissa particular – conclusão

(B) premissa particular – premissa geral – conclusão

(C) premissa geral – segunda premissa geral – conclusão particular

(D) premissa particular – segunda premissa particular – conclusão geral

Há vários equívocos na questão.

Em primeiro lugar, não se pode afirmar que “o método dedutivo é conhecido também como silogismo”. Eles não são a mesma coisa. Todo silogismo é um caso de raciocínio dedutivo, mas nem todo raciocínio dedutivo é um silogismo. A dedução é uma operação mental; o silogismo é a forma lógica dessa operação.

Em segundo lugar, o texto diz que “normalmente o silogismo está organizado na forma de três sentenças em sequência”. O enunciado diz “normalmente”, mas o que é “normalmente”? Afinal, o silogismo pode também ter somente duas sentenças (entimema) ou mais de três (polissilogismo, sorites). Entimema, polissilogismo e sorites são tão casos de silogismo quanto o categórico: não são nem mais “normais” nem menos “normais”. A afirmação do enunciado é equivalente a dizer: “nas palavras de língua portuguesa, normalmente a consoante B é seguida da vogal A”. Não faz sentido. Há diferentes tipos de silogismo, e nenhum pode ser considerado “mais normal” que outro, do mesmo modo que não se pode considerar que uma sílaba seja considerada “mais normal” que outra. “Silogismo normal”… só se inventaram um novo tipo de raciocínio!

Em terceiro lugar, o comando da questão propõe que se indique “a melhor apresentação do silogismo” ou da “estrutura do método dedutivo”. Como assim, “silogismo melhor apresentado”, “estrutura do método dedutivo melhor apresentada”? Afinal, há inúmeras possibilidades de apresentar a estrutura lógica do silogismo, e não existe nenhuma razão racional para dizer que uma é “melhor” do que outra. Dizer que existe uma forma de expor o silogismo “melhor” do que outra expressa um juízo de valor, não uma regra lógica. Por isso, o comando da questão é, do ponto de vista lógico, absurdo.

Em quarto lugar, as alternativas dizem “premissa geral”, “premissa particular” et cetera, nessa linha. Ora, isso é simplesmente errado. Na lógica dedutiva não existe “premissa geral” nem “premissa particular”. Afinal, não se trata simplesmente da utilização de “termos gerais” (como “todos”) ou “particulares” (como “este”). É perfeitamente possível, por exemplo, fazer uma dedução somente utilizando “termos gerais”: “Todos os cariocas são fluminenses; todos os fluminenses são brasileiros; portanto, os cariocas são também brasileiros”. O que se utiliza em lógica dedutiva são “termo menor”, “termo médio” e “termo maior”, sem nenhuma relação necessária com ser “geral” ou “particular”. No exemplo dado, “carioca” é termo menor; “fluminense” é termo médio; “brasileiro” é termo maior. Por isso, não se pode falar em “premissa geral” nem “premissa particular”. O que temos no silogismo categórico é: uma premissa maior (que liga o termo médio ao termo maior); uma premissa menor (que liga o termo menor ao termo médio); e uma conclusão (que liga o termo menor ao termo maior, sem usar o termo médio).

Em quinto e último lugar, concluindo tudo o que foi dito acima, é simplesmente absurdo, errado, falso, dizer que a alternativa (A) – que seria a correta de acordo com o gabarito – é um exemplo “melhor” de silogismo do que a alternativa (B). Quer dizer que se for invertida a ordem da “premissa maior” (e não “premissa geral”) e da “premissa menor” (e não “premissa particular”), então o argumento deixa de ser um silogismo? Faça-me o favor!

Vou ilustrar isso tudo com um exemplo simples.

Veja:

(1) A prova de vestibular pode ter questões imperfeitas, pois é escrita por pessoas.

(2) A prova de vestibular é escrita por pessoas.

Logo, a prova de vestibular pode ter questões imperfeitas.

(3) Pessoas podem escrever questões imperfeitas.

A prova de vestibular é escrita por pessoas.

Logo, a prova de vestibular pode ter questões imperfeitas.

(4) As pessoas pertencem ao conjunto de seres que podem escrever questões de vestibular.

Questões imperfeitas podem ser escritas por pessoas.

Logo, provas de vestibular podem ter questões imperfeitas.

O raciocínio (1) é dedutivo, mas não está escrito sob a forma de silogismo.

O raciocínio (2) é dedutivo, é um silogismo, mas não apresenta uma de suas premissas: ele é um entimema, e tem uma de suas premissas meramente subentendida.

O raciocínio (3) é dedutivo, é um silogismo categórico, e apresenta primeiro a premissa menor e depois a premissa maior.

O raciocínio (4) é dedutivo, é um silogismo categórico, e apresenta primeiro a premissa maior e depois a premissa menor.

Todos são raciocínios dedutivos válidos (e olha que nem falamos de raciocínios dedutivos inválidos, que não deixam de ser raciocínios dedutivos por isso!). O argumento (1) é o único que não se constitui como silogismo. Todos os outros são silogismos perfeitamente “normais” (para falar como o enunciado). Não há um “melhor” (!) do que outro.

Mas, de acordo com a banca que formulou a questão da UERJ, somente o raciocínio (4) é um verdadeiro raciocínio dedutivo!!!

Como é possível que um conjunto tão completo de erros primários, grosseiros, totais tenha lugar numa questão de vestibular da UERJ?

O lado oculto da filosofia – poema de Bernardo Lucas Piñon de Manfredi

Na semana passada, um aluno do Ensino Médio trouxe um poema que escreveu. Gostei muito.

Com sua autorização, reproduzo o poema aqui no blog.

 

O LADO OCULTO DA FILOSOFIA

Bernardo Lucas Piñon de Manfredi

 

A arte de pensar

não está apenas nos momentos de silêncio

mas no momento em que se estuda o silêncio

e como é tão difícil ter silêncio entre as almas.

 

Por quê? A alma, assim como toda a humanidade,

tem sentimentos, heranças espirituais

é feita de escrava, sendo desbotada

a ponto de preferir agir sem pensar

e torna-se uma maldição sobrenatural.

 

O pensamento exige explicações

levando em conta os mistérios e mitos da ciência.

Será que sempre um método científico

pode descobrir as profundezas da humanidade?

 

Há coisas que a ciência não entende

e a filosofia terá sempre uma resposta soberana

é um meio de interagir com os mistérios e mitos

e todos os conceitos que conhecemos.

Mas… qual é o lado oculto da filosofia?

 

O mundo é tão grande quanto pequeno

que portas se abrem quando menos se espera.

Que os lados são sempre únicos quando fazemos escolhas.

Mas a filosofia está sempre aberta

para entender as portas, os lados, as escolhas e a si mesmo.

Simulado ENEM – 80 QUESTÕES de Filosofia

A cada ano, a prova do ENEM tem apresentado mais e mais questões de Filosofia.

Para ajudar na preparação dos vestibulandos, ofereço aos meus leitores um simulado  com 80 questões com conteúdo de Filosofia. Todas as questões foram extraídas de provas do ENEM de 2008 a 2013.

Este simulado é a mais completa reunião de questões das últimas provas do ENEM com conteúdo de Filosofia disponível na web.

Desejo uma boa preparação!

Acesse o simulado em PDF aqui: simulado filosofia no enem 2014

A ética aristotélica

Aristóteles foi o primeiro pensador a insistir que a busca pelo conhecimento deveria ser dividida em diferentes áreas determinadas pelo foco da questão. Assim, por exemplo, distinguiu entre a filosofia da natureza, que seria o chamamos atualmente “ciência”, e metafísica, que seria o que atualmente chamamos “filosofia”. Foi também o primeiro filósofo a insistir na importância da investigação sistemática experimental e na coleta de dados, assim proporcionando um impulso no desenvolvimento do método científico.

O interesse de Aristóteles no mundo material indicava que sua abordagem filosófica era diferente da platônica. Em contraste com Platão, que defendia que nosso mundo cotidiano da experiência é mera cópia imperfeita do reino das Ideias perfeitas, Aristóteles acreditava que a realidade última das coisas reside nos objetos físicos – que podem ser conhecidos pela observação. Assim, levou a cabo estudos biológicos extensos, examinando mais de quinhentas espécies de animais.

Talvez por causa de seu interesse no mundo dos seres vivos, Aristóteles pensava que era possível explicar a existência de todas as coisas em termos de suas funções; isto é, em termos do papel que exercem ao perseguir uma finalidade.

Essa ideia geral aplica-se também a seu pensamento sobre a ética. Uma coisa é virtuosa na medida em que realiza seu potencial latente. Assim, os seres humanos atingem a excelência se agem de acordo com os ditames da razão; a prática da vida virtuosa de acordo com a razão conduz à felicidade.

Um aspecto importante da teoria ética de Aristóteles é a sua famosa doutrina da justa medida, ou do meio-termo.

Segundo essa doutrina, os seres humanos agem bem se evitam os extremos nas respostas que dão às situações que os confrontam. Uma ação justa é a que não peca por deficiência nem por excesso; é uma ação que procura um caminho intermediário.

Por exemplo, a virtude da coragem encontra-se entre a covardia (deficiência) e a temeridade (excesso).

Assim como a saúde do corpo é determinada pelo equilíbrio fisiológico de seus componentes, a virtude consiste na disposição em escolher o justo meio. Essa capacidade, que se adquire e se desenvolve pelo exercício, exclui sistematicamente os contrapostos vícios do excesso e da escassez, realizando uma mediação sobre o controle da razão.

Não há uma fórmula para determinar precisamente quais ações são corretas em uma ocasião particular qualquer; sua definição é questão de avaliar cuidadosamente as respostas apropriadas à luz das circunstâncias particulares.

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles, e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos. Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que acabamos de mencionar, a vida política e a contemplativa. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo.

A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado.

Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao menos, a virtude é mais excelente. Poder-se-ia mesmo supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modo incompleta, porque pode acontecer que seja virtuoso quem está dormindo, quem leva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com os maiores sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém jamais considerará feliz um homem que vive de tal maneira.

Quanto a isto, basta, pois o assunto tem sido suficientemente tratado mesmo nas discussões correntes. A terceira vida é a contemplativa, que examinaremos mais tarde.

Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa. E assim, antes deveriam ser incluídos entre os fins os que mencionamos acima, porquanto são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixemos, pois, este assunto. (…)

Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos.

Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.

Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série infinita.

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação.

Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o “bem feito” residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função.

Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela?

A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E, como a ”vida do elemento racional” também tem dois significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo.

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom tal-e-tal” têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa.

Mas é preciso ajuntar “numa vida completo”. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso. (…)

Também se ajusta à nossa concepção a dos que identificam a felicidade com a virtude em geral ou com alguma virtude particular, pois que à virtude pertence a atividade virtuosa. Mas há, talvez, uma diferença não pequena em colocarmos o sumo bem na posse ou no uso, no estado de ânimo ou no ato. Porque pode existir o estado de ânimo sem produzir nenhum bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos Jogos Olímpicos não são os mais belos e os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que competem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), também as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente.

Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude.

Ora, na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. Em conseqüência, a vida deles não necessita do prazer como uma espécie de encanto adventício, mas possui o prazer em si mesma. Pois que, além do que já dissemos, o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em agir com justiça, nem liberal o que não experimenta prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos.

Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos:

Das coisas a mais nobre é a mais justa, / e a melhor é a saúde;/ Mas a mais doce é alcançar o que / amamos.

Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ou então, uma delas — a melhor —, nós a identificamos com a felicidade.

E no entanto, como dissemos, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas ações utilizamos como instrumentos os amigos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuja ausência empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparência, ou mal-nascido, ou solitário e sem filhos, não tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos.

Como dissemos, pois, o homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude.

Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de adestramento, ou se ela nos é conferida por alguma providência divina, ou ainda pelo acaso. Ora, se alguma dádiva os homens recebem dos deuses, é razoável supor que a felicidade seja uma delas, e, dentre todas as coisas humanas, a que mais seguramente é uma dádiva divina, por ser a melhor.

Esta questão talvez caiba melhor em outro estudo; no entanto, mesmo que a felicidade não seja dada pelos deuses, mas, ao contrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie de aprendizagem ou adestramento, ela parece contar-se entre as coisas mais divinas; pois aquilo que constitui o prêmio e a finalidade da virtude se nos afigura o que de melhor existe no mundo, algo de divino e abençoado.

Dentro desta concepção, também deve ela ser partilhada por grande número de pessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la mediante uma certa espécie de estudo e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa maneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatos sejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, por natureza, tão bom quanto poderia ser, e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas.

Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito.

A resposta à pergunta que estamos fazendo é também evidente pela definição da felicidade, porquanto dissemos que ela é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentes como condições prévias da felicidade, e outros são naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos. E isto, como é de ver concorda com (…) que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações.

Ê natural, portanto, que não chamemos feliz nem ao boi, nem ao cavalo, nem a qualquer outro animal, visto que nenhum deles pode participar de tal atividade. Pelo mesmo motivo, um menino tampouco é feliz, pois que, devido à sua idade, ainda não é capaz de tais atos; e os meninos a quem chamamos felizes estão simplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que neles depositamos. Porque, como dissemos, há mister não só de uma virtude completa mas também de uma vida completa, já que muitas mudanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima de grandes infortúnios na velhice, como se conta de Príamo no Ciclo Troiano; e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ninguém chama feliz.

Então ninguém deverá ser considerado feliz enquanto viver, e será preciso ver o fim, como diz Sólon?

Mesmo que esposemos essa doutrina, dar-se-á o caso de que um homem seja feliz depois de morto? Ou não será perfeitamente absurda tal idéia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie de atividade? Mas, se não consideramos felizes os mortos e se Sólon não se refere a isso, mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar um homem de venturoso porque finalmente não mais o podem atingir males nem infortúnios, isso também fornece matéria para discussão. Efetivamente, acredita-se que para um morto existem males e bens, tanto quanto para os vivos que não têm consciência deles: por exemplo, as honras e desonras, as boas e más fortunas dos filhos e dos descendentes em geral.

E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenha vivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitos reveses podem suceder aos seus descendentes. Alguns serão bons e terão a vida que merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também é evidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podem variar indefinidamente. Seria estranho, pois, se os mortos devessem participar dessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado, também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse o menor efeito sobre a felicidade de seus ancestrais.

Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo exame mais atento talvez nos dê a solução do presente problema. Ora, se é preciso ver o fim para só então declarar um homem feliz, temos aí um paradoxo flagrante: quando ele é feliz, os atributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados dele devido às mudanças a que estão sujeitos, porque admitimos que a felicidade é algo de permanente e que não muda com facilidade, ao passo que cada indivíduo pode sofrer muitas voltas da roda da fortuna. É claro que, para acompanhar o passo de suas vicissitudes, deveríamos chamar o mesmo homem ora de feliz, ora de desgraçado, o que faria do homem feliz um “camaleão, sem base segura”. Ou será um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? O sucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas (…) a existência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o que constitui a felicidade ou o seu contrário são as atividades virtuosas ou viciosas.

A questão que acabamos de discutir confirma a nossa definição, pois nenhuma função humana desfruta de tanta permanência como as atividades virtuosas, que são consideradas mais duráveis do que o próprio conhecimento das ciências. E as mais valiosas dentre elas são mais duráveis, porque os homens felizes de bom grado e com muita constância lhes dedicam os dias de sua vida; e esta parece ser a razão pela qual sempre nos lembramos deles. O atributo em apreço pertencerá, pois, ao homem feliz, que o será durante a vida inteira; porque sempre, ou de preferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou na contemplação virtuosa, e suportará as vicissitudes da vida com a maior nobreza e decoro, se é “verdadeiramente bom” e “honesto acima de toda censura”.

Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto à importância. É claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes não pesam muito na balança, mas uma multidão de grandes acontecimentos, se nos forem favoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em si mesmos, de feitio a aumentar a beleza da vida, mas a própria maneira como um homem os recebe pode ser nobre e boa); e, se se voltarem contra nós, poderão esmagar e mutilar a felicidade, pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas atividades. Todavia, mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por nobreza e grandeza de alma.

Se as atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis. Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade, pensamos nós, todas as contingências da vida, e sempre tira o maior proveito das circunstâncias, como um general que faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calçados com o couro que lhe dão; e do mesmo modo com todos os outros artífices. E, se assim é, o homem feliz nunca pode tornar-se desgraçado, muito embora não alcance a beatitude se tiver uma fortuna semelhante à de Príamo.

E tampouco será ele versátil e mutável, pois nem se deixará desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns, mas somente por muitas e grandes; nem, se sofreu muitas e grandes desventuras, recuperará em breve tempo a sua felicidade. Se a recuperar, será num tempo longo e completo, em que houver alcançado muitos e esplêndidos sucessos.

Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtude perfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante um período qualquer, mas através de uma vida completa? Ou devemos acrescentar: “E que está destinado a viver assim e a morrer de modo consentâneo com a sua vida”? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade, afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim, chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essas condições se realizem ou estejam destinadas a realizar-se — mas homens felizes. Sobre estas questões dissemos o suficiente.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

 

TEXTO 2

 

Antes de tudo, devemos notar que as ações estão sujeitas a se tornar imperfeitas ou por escassez ou por excesso (para recorrermos a testemunhos evidentes acerca de questões obscuras), como podemos ver a propósito da força e da saúde: de fato, tanto os excessivos quanto os escassos exercícios físicos prejudicam a força, assim como o beber e o comer quando superabundantes ou insuficientes estragam a saúde, ao passo que a justa proporção a produz, aumenta e preserva.

O mesmo acontece com a moderação, a coragem e as outras virtudes. De fato, quem evita e teme qualquer coisa e nada enfrenta torna-se tímido; quem, ao contrário, não teme absolutamente nada, mas enfrenta qualquer coisa, torna-se temerário. Do mesmo modo, quem goza de todo tipo de prazer e não se abstém de nenhum se torna intemperante; quem, no entanto, foge de todos, como os rústicos, torna-se insensível. Portanto, a moderação e a coragem são prejudicadas tanto pelo excesso quanto pela escassez, ao passo que são preservadas no caminho do meio.

A virtude é, portanto, uma ordenação de intenções, que consiste na mediação em relação a nós mesmos, definida pela razão e estabelecida como o faria o homem sábio. É uma mediação entre dois vícios: um por excesso, outro por escassez. E como alguns vícios são por escassez e outros são por excesso do que é devido, seja nas paixões, seja nas ações, a virtude encontra e escolhe a justa medida.

Portanto, segundo a sua essência e segundo a razão que estabelece a sua natureza, a virtude é uma mediação, mas em relação ao bem e à perfeição ela está no ponto mais elevado.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

A ética platônica

De acordo com a Teoria das Idéias, só é possível encontrar a verdade sobre as coisas ao se alcançar o mundo inteligível – tarefa que é iniciada por meio do reconhecimento do caráter ilusório e transitório do mundo acessível pelos sentidos.

Para Platão, a alma humana (assim como a cidade) tem três partes: a parte racional (que busca o conhecimento), a parte irascível (na qual se produzem as emoções e que provocam o desejo de mandar) e a parte apetitiva (que busca o prazer das sensações).

Uma pessoa somente pode realizar as melhores ações caso esteja sob a influência da parte racional da alma. Em outras palavras, a ação boa, justa, correta é conseqüência do uso da razão.

Abaixo está reproduzida parte do Livro IX de A República. Nessa passagem, Platão, sob o personagem de Sócrates, procura demonstrar que a parte racional da alma deve ser a parte privilegiada pelo ser humano.

 

TEXTO DE APOIO

 

SÓCRATES – Há algo com que o homem compreende, algo com o que se encoleriza e uma terceira coisa para a qual, devido à variedade de suas aparências, não podemos encontrar uma denominação adequada, mas a designamos de acordo com o elemento que nela predomina: chamamos-lhe apetitiva pela violência dos apetites correspondentes ao comer e ao beber, aos prazeres eróticos e tudo mais que diz respeito aos sentidos; e também lhe chamamos avarenta ou ávida de riquezas, por ser sobretudo com estas que se satisfazem tais desejos.

GLÁUCON – E com razão o fizemos.

SÓCRATES – E se disséssemos que os seus prazeres e inclinações se relacionam com o ganho, não teríamos aí uma idéia central e um marco evidente para assinalar essa parte da alma? Não seria acertado, pois, chamar-lhe cobiçosa e desejosa de ganho?

GLÁUCON – Concordo contigo.

SÓCRATES – E o que mais? Não dissemos da parte irascível que tende inteira e constantemente para o mando, a vitória e a fama?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – Não seria, pois, adequado chamar-lhe arrogante e ambiciosa?

GLÁUCON – Muito adequado.

SÓCRATES – Quanto àquela outra parte com que compreendemos, é evidente a todo mundo que toda ela se dirige para o conhecimento da verdade e menos que às outras lhe importam as riquezas ou a fama.

GLÁUCON – Muito menos.

SÓCRATES – “Amante da ciência” ou “do saber” são, pois, as denominações que melhor lhe assentam?

GLÁUCON – Perfeitamente.

SÓCRATES – E não é verdade que na alma de certos homens prevalece este princípio e na de outros algum dos dois restantes, conforme o caso?

GLÁUCON – Assim é.

SÓCRATES – Podemos, pois, pressupor a existência de três classes de homens: o filósofo, o ambicioso e o avaro?

GLÁUCON – De pleno acordo.

SÓCRATES – E que são três as espécies de prazeres, correspondentes a cada um deles?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – Ora, se fores perguntar sucessivamente a cada um desses homens qual de suas vidas respectivas é mais agradável, cada qual exaltará a sua própria e depreciará as dos outros. E o avaro fará ressaltar a vaidade das honras ou do saber em contraste com o ganho, a menos que aqueles possam render dinheiro, não é assim?

GLÁUCON – É verdade.

SÓCRATES – E o que dirá o ambicioso? Não considerará grosseiro o prazer da riqueza, enquanto o do saber não passa, para ele, de fumaça e futilidade se a Ciência não traz honra consigo?

GLÁUCON – Assim é.

SÓCRATES – E havemos de crer que o filósofo dê algum valor aos outros prazeres em comparação com o de conhecer a verdade tal como é em si e de aprender constantemente alguma coisa a esse respeito? Não pensará que estão bem longe do prazer verdadeiro e não lhes chamará com razão prazeres forçosos, significando com isso que os dispensaria de bom grado se não fosse a necessidade?

GLÁUCON – É preciso conhecê-los bem.

SÓCRATES – Já que estão, pois, em discussão os prazeres de cada classe e as respectivas maneiras de viver, não para saber-se qual é a mais decorosa ou ignominiosa, nem a melhor ou pior, porém qual é a mais agradável e isenta de pesares – como poderemos determinar qual desses homens fala a verdade?

GLÁUCON – Eu não saberia dizê-lo.

SÓCRATES – Bem, mas qual deve ser o critério? Haverá algum melhor do que a experiência, o saber e a razão?

GLÁUCON – Como pode haver?

SÓCRATES – Então reflete nisto: dos três indivíduos, qual é o que tem maior experiência de todos os prazeres que enumeramos? Acaso o avaro, no que toca a conhecer a verdade em si mesma, terá mais experiência do prazer de conhecer do que tem o filósofo do prazer do ganho?

GLÁUCON – O filósofo leva aí grande vantagem, pois necessariamente provou todos os outros prazeres desde sua meninice, enquanto o avaro, se por acaso tenta estudar as essências, não é forçoso que saboreie a doçura desse prazer nem que adquira experiência dele. Digo mais: isso não lhe seria nada fácil, ainda que desejasse.

SÓCRATES – Então o filósofo leva grande vantagem ao avaro no que tange à experiência desses dois prazeres?

GLÁUCON – Sim, muito grande.

SÓCRATES – E passando agora ao ambicioso: terá ele menos experiência do prazer das honras que este do prazer de raciocinar?

GLÁUCON – Não, todos três são honrados na medida em que realizam suas aspirações. Tanto o homem rico quanto o valente ou o sábio possuem sua multidão de admiradores, de modo que todos têm experiência do prazer que proporciona o ser honrado pelos demais. Mas o deleite que dá a contemplação do ser, só o filósofo o conhece.

SÓCRATES – Portanto, sua experiência o capacita a julgar melhor que os outros dois?

GLÁUCON – Muito melhor.

SÓCRATES – E será, além disso, o único que tenha essa experiência ajudada pelo entendimento.

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – Por outro lado, o instrumento com que se deve julgar não é próprio do avaro nem do ambicioso, mas unicamente do filósofo.

GLÁUCON – Que instrumento?

SÓCRATES – Não dissemos que era à razão que cabia decidir?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – E a razão é o instrumento próprio do filósofo.

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – Se o critério consistisse na riqueza e no ganho, a aprovação ou reprovação do avaro teria, forçosamente, o máximo valor de prova.

GLÁUCON – Forçosamente.

SÓCRATES – E se fosse preciso julgar com a honra, a vitória e a valentia, não residiria a verdade na opinião do homem ambicioso e arrogante?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – E se é a experiência, ao entendimento e ao raciocínio que compete julgar?

GLÁUCON – Nesse caso, não se pode fugir à conclusão: o maior grau de verdade se encontra na aprovação do filósofo.

SÓCRATES – Chegamos, pois, a este resultado: o prazer da parte inteligente da alma é o mais deleitoso dos três e a vida mais agradável é a do homem em que essa parte governa o resto.

GLÁUCON – Sem dúvida, o homem sábio fala com autoridade quando louva a sua própria existência.

SÓCRATES – E quais serão a vida e o prazer que esse juiz coloca em segundo lugar?

GLÁUCON – Evidentemente, os do homem guerreiro e ambicioso, que estão mais próximos dos seus que os do homem de negócio.

SÓCRATES – E em último lugar vem o avaro?

GLÁUCON – Não se pode julgar de outro modo.

SÓCRATES – (…) Um sábio me sussurra ao ouvido que nenhum prazer é completo nem puro, salvo o do filósofo; todos os demais não passam de sombras. E esta é, para o injusto, a maior e a mais decisiva das quedas.

GLÁUCON – Com efeito; mas como explicas isto?

SÓCRATES – Alcançarei a explicação por meio de perguntas, se tu me responderes.

GLÁUCON – Pergunta, pois.

SÓCRATES – Dize-me: não será a dor o contrário do prazer?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – E, além desses dois, não existe um estado neutro, que é o de quem não sente prazer nem dor?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – Um estado intermediário, uma espécie de repouso da alma entre os dois? Não é isso que dizes?

GLÁUCON – Isso mesmo.

SÓCRATES – E não te lembras do que costumam dizer as pessoas quando estão doentes?

GLÁUCON – Que é?

SÓCRATES – Que não há nada mais doce do que estar são, mas que não sabiam disso antes de adoecer.

GLÁUCON – Lembro-me agora.

SÓCRATES – E, do mesmo modo, ouves dizer aos que acabam de passar por uma dor violenta que não há nada mais delicioso do que a cessação da dor?

GLÁUCON – Ouço, de fato.

SÓCRATES – E não há muitas outras espécies de sofrimento em que o simples descanso e a cessação da dor, e não qualquer gozo positivo, são louvados por eles como o maior dos prazeres?

GLÁUCON – Sim, talvez seja esse descanso o que então lhes parece deleitoso e apetecível.

SÓCRATES – Mas, por outro lado, quando cessa o prazer que sente alguém, essa espécie de descanso ou de cessação lhe será dolorosa?

GLÁUCON – Sim, talvez.

SÓCRATES – Portanto, o estado intermediário de repouso será de certo modo ambas as coisas: prazer e dor.

GLÁUCON – Assim parece.

SÓCRATES – E é possível que, não sendo nenhuma das duas coisas, venha a converter-se numa e na outra?

GLÁUCON – Creio que não.

SÓCRATES – E tanto o prazer como a dor são movimentos da alma, não é verdade?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – Mas acabamos de mostrar que aquilo que não é uma coisa nem outra está em repouso e não em movimento, ocupando uma posição intermediária entre ambas?

GLÁUCON – Mostramos, sim.

SÓCRATES – Como é possível afirmar, então, que a ausência de dor seja prazer, ou vice-versa?

GLÁUCON – Impossível.

SÓCRATES – Portanto, o sossego não é, mas apenas parece ser agradável em face do doloroso, e doloroso em face do agradável; e todas essas impressões nenhuma realidade têm quando aferidas pela essência do prazer, mas constituem uma espécie de impostura?

GLÁUCON – É, pelo menos, o que se conclui do teu raciocínio.

SÓCRATES – Considera a classe de prazeres que não são precedidos de dores, e deixarás de acreditar, como talvez acredites agora, que o prazer consiste na cessação da dor e a dor, na cessação do prazer.

GLÁUCON – Quais são esses e onde os encontrarei?

SÓCRATES – São em grande número. Toma, por exemplo, os prazeres do olfato: estes se produzem de imediato e com extraordinária intensidade, e ao cessarem não deixam dor alguma.

GLÁUCON – Muito certo, isso.

SÓCRATES – Não nos convencerá, pois, essa história de que a cessação da dor é um prazer e a cessação do prazer, uma dor.

GLÁUCON – Não, com efeito.

SÓCRATES – No entanto, os chamados prazeres que chegam à alma pelo caminho do corpo, e que talvez sejam os mais numerosos e violentos, pertencem a esta classe: são alívios da dor.

GLÁUCON – É verdade.

SÓCRATES – E não têm a mesma índole os pressentimentos de futuros prazeres e dores, nascidos da expectativa?

GLÁUCON – A mesma.

SÓCRATES – Queres que te mostre isso por meio de uma imagem?

GLÁUCON – Ouçamos.

SÓCRATES – Admites que existe na natureza uma região superior, uma inferior e uma intermediária?

GLÁUCON – Admito.

SÓCRATES – E se uma pessoa fosse transportada da inferior para a intermediária, não imaginaria que estava subindo ao cume? E quando estiver no meio, contemplando o seu ponto de partida, não suporá que se encontra já nas alturas, se nunca vi a altura verdadeira?

GLÁUCON – Evidentemente. Como poderia pensar de outro modo?

E se fosse levada de novo a esse ponto de partida, não pensaria, desta vez com razão, que a estavam levando para baixo?

GLÁUCON – Pois claro.

SÓCRATES – E tudo isso se deveria à sua ignorância do que é verdadeiramente o alto, o baixo e o intermediário?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – Como admirar-se, então, de que aqueles que não conhecem a verdade, além de terem opiniões ilusórias acerca de muitas outras coisas, também encarem de tal modo o prazer, a dor e o que se encontra no meio de ambos que, quando são arrastados à dor, se sintam realmente e com razão doloridos, mas, quando passam da dor ao estado intermediário, convencem-se de ter alcançado a satisfação e o prazer – e, como alguém que, por não conhecer o branco, visse no cinzento o contrário do negro, também eles, por ignorância do prazer, se enganam vendo na ausência de dor o contrário desta?

GLÁUCON – Não me admiro disso, por Zeus! Antes me admiraria se não fosse assim.

SÓCRATES – Atenta agora para esta outra coisa: a fome, a sede e outros estados semelhantes não são como uma espécie de vazios na disposição do corpo?

GLÁUCON – Perfeitamente.

SÓCRATES – E a ignorância e a insensatez não são, por outro lado, vazios e inanições da alma?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – E não encheria esses vazios o que tomasse alimento ou adquirisse inteligência?

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – E qual é a plenitude mais verdadeira: a do que tem mais realidade ou a do que tem menos?

GLÁUCON – A do que tem mais, é claro.

SÓCRATES – E qual dos dois gêneros de coisas acreditas que participa mais da existência pura: aquelas de que fazem parte o pão, os condimentos, a bebida e os demais alimentos, ou a classe em que se incluem a opinião verdadeira, o conhecimento, a inteligência e as diferentes espécies de virtude? Formulemos a pergunta de outro modo: que é mais real, o que se ocupa com o invariável, o imortal e o verdadeiro, possuindo, ademais, esses mesmos atributos e produzindo-se em algo de sua mesma índole, ou o que se atém ao mortal e variável, sendo assim ele próprio e produzindo-se no que é de sua mesma natureza?

GLÁUCON – É muito superior o que se refere ao invariável.

SÓCRATES – E a essência do que sempre muda terá mais realidade do que a da ciência?

GLÁUCON – De modo algum.

SÓCRATES – E terá mais verdade?

GLÁUCON – Tampouco.

SÓCRATES – E, tendo menos verdade, terá também menos realidade?

GLÁUCON – É forçoso.

SÓCRATES – Assim, pois, de um modo geral, as espécies de coisas que estão a serviço do corpo têm menos verdade e realidade que as atinentes ao serviço da alma?

GLÁUCON – Muito menos.

SÓCRATES – E não crês que o mesmo se possa dizer do próprio corpo em relação à alma?

GLÁUCON – Sim, por certo.

SÓCRATES – Portanto, o que é mais real em si mesmo e está cheio de coisas mais reais está realmente mais cheio do que o cheio de coisas menos reais e que, além disso, é menos real em si mesmo?

GLÁUCON – Naturalmente.

SÓCRATES – De modo que, se o encher-se de coisas congêneres com a natureza proporciona prazer, o que se enche mais realmente e de coisas mais reais gozará de um prazer mais verdadeiro e autêntico; e o que participa de coisas menos reais se encherá de maneira menos real e sólida e gozará um prazer menos seguro e verdadeiro.

GLÁUCON – É indubitável.

SÓCRATES – Por isso, os faltos de inteligência e virtude, que sempre andam ocupados com a glutonaria e a sensualidade, são arrastados alternativamente para baixo e para cima até a metade da subida, e assim passam a vida inteira; sem jamais ultrapassarem esse ponto, não vêem nem alcançam a verdadeira altura, nem se enchem realmente do que é real, nem desfrutam de um prazer puro e duradouro. São como reses que, a olhar sempre para baixo e com a cabeça inclinada para a terra – isto é, para as suas mesas – cevam-se de pasto, engordam, acasalam-se e, no seu amor excessivo desses deleites, escoiceiam-se e marram-se umas às outras com cascos e chifres de ferro, e se matam mutuamente, levadas por sua avidez insaciável, porque não enchem de coisas reais o seu ser real e sua parte apta para conter aquelas.

(PLATÃO. A República, livro IX)

Simulado ENEM – 60 questões com conteúdo de Filosofia

Ofereço aos meus leitores vestibulandos um simulado com 60 questões com conteúdo de Filosofia do ENEM.

Todas as questões foram extraídas de provas do ENEM de 2008 a 2012.

Este simulado é provavelmente a mais completa reunião de questões das últimas provas do ENEM com conteúdo de Filosofia disponível na web.

Desejo uma boa preparação!

Acesse o simulado em PDF aqui:

Simulado Filosofia ENEM – 60 questões

O gabarito está aqui:

GABARITO

 

Confira também:

SIMULADO ENEM – 80 QUESTÕES de Filosofia (2008-2013)

A Escola de Mileto

Os primeiros filósofos eram naturais da cidade de Mileto. Foram chamados por Aristóteles, tempos depois, de “físicos”, porque o problema central com o qual lidavam era a questão da physis. Atualmente, damos aos primeiros filósofos a qualidade de “pré-socráticos”, pois investigam questões diferentes das que passaram a ser abordadas pela filosofia após Sócrates. As mais importantes perguntas que os pré-socráticos faziam eram:

– Como surgiu o cosmos?

– Como a physis é ordenada?

– Quais são os elementos fundamentais da physis, ou seja, qual é o arché?

A resposta apresentada por cada um dos três principais filósofos milesianos foi baseada na idéia de que a physis tinha um arché unitário. Em outras palavras, um único princípio deve ser utilizado para explicar todas as coisas no cosmos.

Grande parte dos textos dos primeiros filósofos milesianos se perdeu no tempo. A maior fonte de conhecimento sobre suas teses vem de filósofos e historiadores posteriores que relataram as posições defendidas pelos filósofos anteriores.

Esses relatos foram chamados doxografia, palavra que deriva de doxa, que significa opinião na língua grega, e graphia, que significa escrita. Então, doxografia de um filósofo é o conjunto de opiniões sobre a filosofia de um determinado filósofo da Antiguidade. A doxografia é a maior (e, muitas vezes, a única) fonte de conhecimento dos filósofos da Escola de Mileto: Tales, Anaximandro e Anaxímenes.

Tales (624-546 a.C.) foi considerado o primeiro de todos os filósofos. Em contraste com as antigas explicações mitológicas, Tales tentou encontra explicações naturalistas para o mundo, sem referência a coisa alguma sobrenatural. Explicou, por exemplo, os terremotos por meio da teoria de que a Terra flutua na água; os terremotos seriam causados pelo encontro da Terra com ondas.

Tales procurava pelo “princípio” de todas as coisas, ou seja, pelo arché. O arché seria aquilo de que todas as coisas seriam compostas, em que todas as coisas subsistem e para que todas as coisas tendem.

Segundo a cosmologia de Tales, a arché seria a água. Todas as coisas seriam compostas por água.

Devido ao fato de ter sido o primeiro pensador a procurar um princípio natural observável (a água) para explicar todas as coisas, muitas vezes Tales é considerado o primeiro cientista.

Contudo, provavelmente o que Tales tinha em mente com a idéia de água não era o mesmo que nós, que pensamos na substância H2O. Provavelmente o que Tales tinha em mente era algo como o elemento líquido, o princípio líquido como a fonte de todas as coisas na natureza.

Este elemento ou princípio líquido, considerado de modo unitário, seria a fonte, o fim e o substrato de todos os seres individuais e múltiplos.

Assim, o princípio líquido universal é aquilo de que todas as coisas surgem, em que todas as coisas existem e para o que todas as coisas se encaminham.

Evidentemente, esta idéia, embora seja naturalista, pois o princípio líquido é parte da natureza, não é materialista. Tales não era um filósofo para quem a única realidade era material; na verdade, a realidade substancial é natural, é una, mas não é material.

Note-se que não-material não significa sobrenatural. Mesmo quando diz que o ímã tem alma, não utiliza aqui um princípio sobrenatural; apenas justifica o movimento do ímã na direção do ferro (ou o contrário) por um princípio natural, o princípio da vida (a alma), pois apenas o que tem vida poderia mover-se autonomamente. Embora não-material, o princípio fundamental é parte da physis.

Neste sentido, podemos também compreender a tese mais conhecida de Anaximandro (610-546 a.C.). Aluno de Tales, professor de Anaxímenes e de Pitágoras, foi o primeiro filósofo a escrever seus estudos, embora apenas um fragmento de seu trabalho ainda exista.

Anaximandro seguiu a mesma linha de Tales e foi além.  Afirmou que a natureza é regida por leis, como as sociedades humanas, e nada que cause distúrbio ao balanço da natureza pode durar muito tempo.

Suas contribuições à filosofia envolvem várias disciplinas. Na astronomia, tentou descrever a mecânica dos corpos celestes em relação à Terra. Também desenhou um mapa do mundo que contribuiu grandemente para o avanço da geografia. Esteve envolvido com a política de Mileto e foi enviado como líder de uma de suas colônias.

Contudo, foi a respeito do princípio fundamental que Anaximandro fez suas mais duradouras contribuições para a filosofia.

Ao contrário de Tales, que propôs que o arché fosse o princípio líquido, ou seja, a água, Anaximandro defendeu que o princípio não era líquido, nem sólido, nem gasoso (mesmo que líquido, sólido ou gasoso fossem tomados como princípios muito gerais e quase metafóricos). Sua proposta foi de que o arché não pode ter limite, determinação nem forma.

Afinal, se o arché tiver forma, todas as coisas criadas dele terão necessariamente a forma do arché. Contudo, se o arché não tiver forma, limite ou determinação, pode vir a se tomar a forma, ter o limite e determinar-se como qualquer outra coisa.

Anaximandro deu a esse arché indefinido, indeterminado e ilimitado o nome ápeiron. O ápeiron está presente em todos os lugares; assim como o líquido para Tales, é do ápeiron que tudo surgiu, é no ápeiron que tudo existe e para o apeíron tudo segue – o ápeiron é o início, o meio e o fim.

Aqui torna-se evidente que estamos diante de algo novo: o ápeiron é um princípio natural que nos lembra a idéia de Deus – num momento em que ninguém ainda havia pensado em Deus desse modo.

Mesmo a primeira religião monoteísta, o judaísmo, não tinha ainda naquela época adotado de modo inequívoco a concepção da tradição sacerdotal hebraica de um Deus universal, onisciente, onipresente e onipotente, a concepção que ficaria consagrada após alguns séculos.

Em outras palavras, a concepção racional e naturalista de Anaximandro a respeito do arché precedeu e, possivelmente, influenciou a concepção de Deus que se teria posteriormente na Grécia, no judaísmo e no cristianismo. Estamos diante de uma concepção naturalista de Deus – um Deus desumanizado, desantropomorfizado, universal, fonte, fim e substrato de todos os seres; em suma, estamos diante da primeira concepção de um Ser que puramente É – conceito que a Escola Eleata desenvolveu mais profundamente ainda nos primórdios da filosofia grega.

Anaxímenes (585-525 a.C.) foi aluno de Anaximandro. Suas idéias são próximas à dos dois outros milesianos, mas, em lugar do princípio líquido ou do ápeiron, era o ar a ser tomado como arché.

Esta idéia parece, à primeira vista, um retrocesso de um princípio bastante complexo, como o ápeiron, de volta a um princípio material (como aparentemente é a água). Contudo, assim como a água a que Tales faz referência não é o que nós chamamos comumente água, o que Anaxímenes chama ar não é o que nós chamamos ar. Anaxímenes não se referia à mistura química gasosa entre o oxigênio, o nitrogênio e o gás carbônico: o ar, para os gregos, era considerado algo infinito que preenche todos os lugares em todo o cosmos.

Além disso, tanto para os gregos quanto para talvez todas as civilizações da Antiguidade, o ar, o sopro, o hálito, era considerado o princípio vital. Isso parece evidente: a respiração, ou a falta dela, indica se um ser vivo vive ou morre; quando um bebê nasce, precisa começar a respirar; a morte vem frequentemente acompanhada de um último suspiro; e é muito comum na religiosidade antiga que a vida seja dada pela divindade com um sopro vital (“Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”; Gn 2,7); na própria tradição judaica e cristã, Deus é às vezes visto como uma brisa ou um vento suave (“e depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo o murmúrio de uma brisa suave. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta”; I Reis 19,12-13).

Isso significa que também Anaxímenes propõe um princípio natural que não é, a despeito do que possa parecer à primeira vista, material. Pode-se dizer que este princípio, assim como o proposto por Tales, tem uma manifestação material – mas o princípio uno e universal não o é. Ainda assim, é um princípio físico, ou imanente.Ou seja: ainda que possamos fazer referência a um “sopro divino” na tese de Anaxímenes, esse “divino” é constitutivo da physis na própria physis. Em outras palavras, o divino, para Anaxímenes, é natural.

Do mito ao pensamento racional – por François Châtelet

A história moderna da filosofia da Antiguidade restabelece uma ordem intelectualmente satisfatória para aqueles que a elaboram. No princípio, há, a religião, o mito, a poesia; de Homero a Píndaro (e, passando por um desvio, até os autores clássicos da tragédia); em seguida, uma transição: os “pré-socráticos”. No mesmo “saco” são metidos os “físicos” – Tales, por exemplo –, os atomistas, os médicos, os historiadores, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, os sofistas. Surge então Sócrates: tudo mda, mas de uma maneira que não é ainda radical. Com Platão, com a fundação da Academia, em 387, é instituída finalmente a ordem da racionalidade; precária, inábil, essa ordem, que estará sujeita a múltiplas modificações, determinou já seus princípios. Ao pensamento que obedece à exigência lendária, substitui-se uma nova lógica regulando, graças a uma estrita disciplina do discurso, a questão do direito à palavra verdadeira, isto é, eficaz.

Uma semelhante leitura é boa. É incontestável que a concepção grega do homem e do mundo se “secularizou” ou “laicizou” progressivamente e que o universo dos deuses desapareceu pouco a pouco face às ações dos homens. Enquanto nos séculos que se convencionou chamar homéricos a narração se organiza em torno dos personagens divinos, os personagens humanos sendo reduzidos eles próprios a essências com o estatuto da quase-dependência, na época clássica – no século V – o homem, como cidadão-guerreiro, que fala e que combate, aparece como assumindo o seu destino. Nesta época os gêneros culturais mudam de sentido e estilo: a tragédia, antes fundamentalmente religiosa, torna-se cerimônia cívica; a comédia passa do jogo burlesco à crítica política; outros se afirmam como a história-geografia: descrições lendárias e genealogias místicas dão lugar a paisagens e costumes analisados e descritos com precisão, a seqüências de acontecimentos narradas escrupulosamente; outros nascem como uma medicina que, doravante, faz apelo antes à investigação das causas das enfermidades que aos recursos ambíguos da adivinhação; como a “física”, que passa pouco a pouco das especulações mágicas ao estudo das relações fenomenais; como a arte da palavra, que deixa de ser o apanágio das famílias nobres para se tornar o meio do qual todo cidadão dispõe, pelo menos em direito, para fazer valer suas opiniões e interesses; como a “filosofia”, que deixa de ser declaração exaltante e misteriosa para reivindicar, com a mestria com que domina o jogo das questões e respostas, seu direito a definir em todos os domínios a jurisdição suprema.

Em suma, para falar como Condorcet, o progresso vai bem. Lentamente, as “luzes” se instalam. O lugar onde esta mutação se opera é a Polis, a Cidade. Esta se forma nas cidades coloniais, particularmente da Ásia Menor; chega então à metrópole e Atenas será o lugar de uma evolução tida posteriormente por exemplar. O esquema de evolução é, consequentemente, satisfatório: a conquista política do estatuto cívico – da ordem da cidadania, na qual o destino de cada um é definido não pela proximidade aos deuses, nem por pertencer a uma família, nem pela obrigação de lealdade a um chefe, mas pela relação ao princípio abstrato que é a lei – constitui uma primeira etapa. A instauração da democracia que se efetua, por causas históricas localizáveis, em Atenas, é o segundo momento. Uma democracia não é apenas, como sua etimologia indica, o poder do “povinho”, é antes o regime no qual o governo está “no meio”, quando cada cidadão está de direito e de fato capacitado a participar dele. Uma organização racional, correspondendo ao lugar do homem na disposição cósmica, se opõe às desordens dos bárbaros longínquos, à ordem absurda dos bárbaros demasiado próximos – o Império Persa. Subministra-se aí um pensamento novo, que rejeita nos horizontes distantes do arcaísmo o excessivo interesse pelos deuses e, em conseqüência, marca o exclusivo interesse pelos homens.

(CHÂTELET, François. História da Filosofia: Idéias, Doutrinas, vol. 1)

Os filósofos pré-socráticos – por Gerd Bornheim

O surto da Filosofia só pode ser compreendido através de certas características muito peculiares à religião grega. Não se trata de afirmar que a Religião tenha sido a causa da instauração da Filosofia; também não se trata tão-só de reconhecer a coincidência de certos conteúdos. O problema consiste muito mais em compreender como estes conteúdos foram transferidos de um contexto mítico para o domínio da pergunta racional. Quando Tales afirma que a água é o elemento primordial de todas as coisas, há nisto uma clara ressonância do mito homérico, que mergulha por sua vez nas mais primitivas crenças religiosas. Mas tal ressonância não autoriza a dizer que a afirmação do mundo natural implica a recusa de uma realidade sobrenatural. Sem dúvida, as colônias em que se desenvolveu a filosofia pré-socrática não se caracterizavam pela intensa religiosidade da Grécia peninsular – que se extasiava, na mesma época, com a tragédia. Não é, contudo, a falta de religiosidade que explica o surto da Filosofia. Trata-se muito mais de outro tipo de religiosidade, que obrigava o homem das colônias a viver mais por si mesmo e a desenvolver uma certa ousadia intelectual. O itinerário do pensamento pré-socrático não se desdobra do “mito ao logos”, mas de um logos mítico para a conquista de um logos mais acentuadamente noético.

Por outro lado, se quisermos explicar tal ousadia devemos atentar a um rasgo fundamental da religiosidade grega: o homem grego não compreende os seus deuses como pertencentes a um mundo sobrenatural; deparamos com uma religião que desconhece o dogma ou qualquer tipo de verdade que não encontre os seus fundamentos na própria ordem natural. Os deuses gregos apresentam-se com uma evidência que os prende à ordem natural das coisas. Não existe o exclusivismo do Deus hebraico ou muçulmano, que só reconhece o homem quando este se converte. Longe de se limitarem a uma igreja ou aos privilégios de um povo escolhido, os deuses gregos são reconhecidos em sua presença puramente natural na ordem do mundo. E é esta presença natural que empresta aos deuses gregos uma universalidade ímpar. Os deuses existem assim como existem as plantas, as pedras, o amor, os homens, o riso, o choro, a justiça.

A partir de tais pressupostos religiosos compreende-se que aos poucos uma atitude filosófica diante do real se tornasse viável, que o homem passasse a afirmar-se como um ser que por suas próprias forças questiona o real. Claro que a autonomia da pergunta filosófica só pode surgir ao cabo de um longo itinerário. Se em Homero o poeta se esconde, anônimo, atrás dos feitos dos deuses e dos heróis, já Hesíodo se apresenta como homem, e quase que constrói a seu modo uma teogonia. Desta forma, a atividade racional do homem se afirma com uma intensidade crescente, até atingir, ao tempo dos pré-socráticos, o seu primeiro momento de maturidade. Burnet chama a atenção para o fato de que os primeiros filósofos usam até mesmo a palavra deus em um sentido não-religioso. Se o pensamento filosófico é em certa medida condicionado pela Religião, esta passa a sofrer o impacto da Filosofia.

(BORNHEIM, Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos)