A ética aristotélica

Aristóteles foi o primeiro pensador a insistir que a busca pelo conhecimento deveria ser dividida em diferentes áreas determinadas pelo foco da questão. Assim, por exemplo, distinguiu entre a filosofia da natureza, que seria o chamamos atualmente “ciência”, e metafísica, que seria o que atualmente chamamos “filosofia”. Foi também o primeiro filósofo a insistir na importância da investigação sistemática experimental e na coleta de dados, assim proporcionando um impulso no desenvolvimento do método científico.

O interesse de Aristóteles no mundo material indicava que sua abordagem filosófica era diferente da platônica. Em contraste com Platão, que defendia que nosso mundo cotidiano da experiência é mera cópia imperfeita do reino das Ideias perfeitas, Aristóteles acreditava que a realidade última das coisas reside nos objetos físicos – que podem ser conhecidos pela observação. Assim, levou a cabo estudos biológicos extensos, examinando mais de quinhentas espécies de animais.

Talvez por causa de seu interesse no mundo dos seres vivos, Aristóteles pensava que era possível explicar a existência de todas as coisas em termos de suas funções; isto é, em termos do papel que exercem ao perseguir uma finalidade.

Essa ideia geral aplica-se também a seu pensamento sobre a ética. Uma coisa é virtuosa na medida em que realiza seu potencial latente. Assim, os seres humanos atingem a excelência se agem de acordo com os ditames da razão; a prática da vida virtuosa de acordo com a razão conduz à felicidade.

Um aspecto importante da teoria ética de Aristóteles é a sua famosa doutrina da justa medida, ou do meio-termo.

Segundo essa doutrina, os seres humanos agem bem se evitam os extremos nas respostas que dão às situações que os confrontam. Uma ação justa é a que não peca por deficiência nem por excesso; é uma ação que procura um caminho intermediário.

Por exemplo, a virtude da coragem encontra-se entre a covardia (deficiência) e a temeridade (excesso).

Assim como a saúde do corpo é determinada pelo equilíbrio fisiológico de seus componentes, a virtude consiste na disposição em escolher o justo meio. Essa capacidade, que se adquire e se desenvolve pelo exercício, exclui sistematicamente os contrapostos vícios do excesso e da escassez, realizando uma mediação sobre o controle da razão.

Não há uma fórmula para determinar precisamente quais ações são corretas em uma ocasião particular qualquer; sua definição é questão de avaliar cuidadosamente as respostas apropriadas à luz das circunstâncias particulares.

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles, e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos. Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que acabamos de mencionar, a vida política e a contemplativa. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo.

A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado.

Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao menos, a virtude é mais excelente. Poder-se-ia mesmo supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modo incompleta, porque pode acontecer que seja virtuoso quem está dormindo, quem leva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com os maiores sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém jamais considerará feliz um homem que vive de tal maneira.

Quanto a isto, basta, pois o assunto tem sido suficientemente tratado mesmo nas discussões correntes. A terceira vida é a contemplativa, que examinaremos mais tarde.

Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa. E assim, antes deveriam ser incluídos entre os fins os que mencionamos acima, porquanto são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixemos, pois, este assunto. (…)

Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos.

Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.

Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série infinita.

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar; por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação.

Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o “bem feito” residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função.

Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela?

A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E, como a ”vida do elemento racional” também tem dois significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo.

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom tal-e-tal” têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa.

Mas é preciso ajuntar “numa vida completo”. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso. (…)

Também se ajusta à nossa concepção a dos que identificam a felicidade com a virtude em geral ou com alguma virtude particular, pois que à virtude pertence a atividade virtuosa. Mas há, talvez, uma diferença não pequena em colocarmos o sumo bem na posse ou no uso, no estado de ânimo ou no ato. Porque pode existir o estado de ânimo sem produzir nenhum bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos Jogos Olímpicos não são os mais belos e os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que competem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), também as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente.

Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude.

Ora, na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. Em conseqüência, a vida deles não necessita do prazer como uma espécie de encanto adventício, mas possui o prazer em si mesma. Pois que, além do que já dissemos, o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em agir com justiça, nem liberal o que não experimenta prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos.

Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos:

Das coisas a mais nobre é a mais justa, / e a melhor é a saúde;/ Mas a mais doce é alcançar o que / amamos.

Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ou então, uma delas — a melhor —, nós a identificamos com a felicidade.

E no entanto, como dissemos, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas ações utilizamos como instrumentos os amigos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuja ausência empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparência, ou mal-nascido, ou solitário e sem filhos, não tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos.

Como dissemos, pois, o homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude.

Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de adestramento, ou se ela nos é conferida por alguma providência divina, ou ainda pelo acaso. Ora, se alguma dádiva os homens recebem dos deuses, é razoável supor que a felicidade seja uma delas, e, dentre todas as coisas humanas, a que mais seguramente é uma dádiva divina, por ser a melhor.

Esta questão talvez caiba melhor em outro estudo; no entanto, mesmo que a felicidade não seja dada pelos deuses, mas, ao contrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie de aprendizagem ou adestramento, ela parece contar-se entre as coisas mais divinas; pois aquilo que constitui o prêmio e a finalidade da virtude se nos afigura o que de melhor existe no mundo, algo de divino e abençoado.

Dentro desta concepção, também deve ela ser partilhada por grande número de pessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la mediante uma certa espécie de estudo e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa maneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatos sejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, por natureza, tão bom quanto poderia ser, e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas.

Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito.

A resposta à pergunta que estamos fazendo é também evidente pela definição da felicidade, porquanto dissemos que ela é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentes como condições prévias da felicidade, e outros são naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos. E isto, como é de ver concorda com (…) que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações.

Ê natural, portanto, que não chamemos feliz nem ao boi, nem ao cavalo, nem a qualquer outro animal, visto que nenhum deles pode participar de tal atividade. Pelo mesmo motivo, um menino tampouco é feliz, pois que, devido à sua idade, ainda não é capaz de tais atos; e os meninos a quem chamamos felizes estão simplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que neles depositamos. Porque, como dissemos, há mister não só de uma virtude completa mas também de uma vida completa, já que muitas mudanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima de grandes infortúnios na velhice, como se conta de Príamo no Ciclo Troiano; e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ninguém chama feliz.

Então ninguém deverá ser considerado feliz enquanto viver, e será preciso ver o fim, como diz Sólon?

Mesmo que esposemos essa doutrina, dar-se-á o caso de que um homem seja feliz depois de morto? Ou não será perfeitamente absurda tal idéia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie de atividade? Mas, se não consideramos felizes os mortos e se Sólon não se refere a isso, mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar um homem de venturoso porque finalmente não mais o podem atingir males nem infortúnios, isso também fornece matéria para discussão. Efetivamente, acredita-se que para um morto existem males e bens, tanto quanto para os vivos que não têm consciência deles: por exemplo, as honras e desonras, as boas e más fortunas dos filhos e dos descendentes em geral.

E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenha vivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitos reveses podem suceder aos seus descendentes. Alguns serão bons e terão a vida que merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também é evidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podem variar indefinidamente. Seria estranho, pois, se os mortos devessem participar dessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado, também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse o menor efeito sobre a felicidade de seus ancestrais.

Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo exame mais atento talvez nos dê a solução do presente problema. Ora, se é preciso ver o fim para só então declarar um homem feliz, temos aí um paradoxo flagrante: quando ele é feliz, os atributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados dele devido às mudanças a que estão sujeitos, porque admitimos que a felicidade é algo de permanente e que não muda com facilidade, ao passo que cada indivíduo pode sofrer muitas voltas da roda da fortuna. É claro que, para acompanhar o passo de suas vicissitudes, deveríamos chamar o mesmo homem ora de feliz, ora de desgraçado, o que faria do homem feliz um “camaleão, sem base segura”. Ou será um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? O sucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas (…) a existência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o que constitui a felicidade ou o seu contrário são as atividades virtuosas ou viciosas.

A questão que acabamos de discutir confirma a nossa definição, pois nenhuma função humana desfruta de tanta permanência como as atividades virtuosas, que são consideradas mais duráveis do que o próprio conhecimento das ciências. E as mais valiosas dentre elas são mais duráveis, porque os homens felizes de bom grado e com muita constância lhes dedicam os dias de sua vida; e esta parece ser a razão pela qual sempre nos lembramos deles. O atributo em apreço pertencerá, pois, ao homem feliz, que o será durante a vida inteira; porque sempre, ou de preferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou na contemplação virtuosa, e suportará as vicissitudes da vida com a maior nobreza e decoro, se é “verdadeiramente bom” e “honesto acima de toda censura”.

Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto à importância. É claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes não pesam muito na balança, mas uma multidão de grandes acontecimentos, se nos forem favoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em si mesmos, de feitio a aumentar a beleza da vida, mas a própria maneira como um homem os recebe pode ser nobre e boa); e, se se voltarem contra nós, poderão esmagar e mutilar a felicidade, pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas atividades. Todavia, mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por nobreza e grandeza de alma.

Se as atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis. Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade, pensamos nós, todas as contingências da vida, e sempre tira o maior proveito das circunstâncias, como um general que faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calçados com o couro que lhe dão; e do mesmo modo com todos os outros artífices. E, se assim é, o homem feliz nunca pode tornar-se desgraçado, muito embora não alcance a beatitude se tiver uma fortuna semelhante à de Príamo.

E tampouco será ele versátil e mutável, pois nem se deixará desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns, mas somente por muitas e grandes; nem, se sofreu muitas e grandes desventuras, recuperará em breve tempo a sua felicidade. Se a recuperar, será num tempo longo e completo, em que houver alcançado muitos e esplêndidos sucessos.

Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtude perfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante um período qualquer, mas através de uma vida completa? Ou devemos acrescentar: “E que está destinado a viver assim e a morrer de modo consentâneo com a sua vida”? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade, afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim, chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essas condições se realizem ou estejam destinadas a realizar-se — mas homens felizes. Sobre estas questões dissemos o suficiente.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

 

TEXTO 2

 

Antes de tudo, devemos notar que as ações estão sujeitas a se tornar imperfeitas ou por escassez ou por excesso (para recorrermos a testemunhos evidentes acerca de questões obscuras), como podemos ver a propósito da força e da saúde: de fato, tanto os excessivos quanto os escassos exercícios físicos prejudicam a força, assim como o beber e o comer quando superabundantes ou insuficientes estragam a saúde, ao passo que a justa proporção a produz, aumenta e preserva.

O mesmo acontece com a moderação, a coragem e as outras virtudes. De fato, quem evita e teme qualquer coisa e nada enfrenta torna-se tímido; quem, ao contrário, não teme absolutamente nada, mas enfrenta qualquer coisa, torna-se temerário. Do mesmo modo, quem goza de todo tipo de prazer e não se abstém de nenhum se torna intemperante; quem, no entanto, foge de todos, como os rústicos, torna-se insensível. Portanto, a moderação e a coragem são prejudicadas tanto pelo excesso quanto pela escassez, ao passo que são preservadas no caminho do meio.

A virtude é, portanto, uma ordenação de intenções, que consiste na mediação em relação a nós mesmos, definida pela razão e estabelecida como o faria o homem sábio. É uma mediação entre dois vícios: um por excesso, outro por escassez. E como alguns vícios são por escassez e outros são por excesso do que é devido, seja nas paixões, seja nas ações, a virtude encontra e escolhe a justa medida.

Portanto, segundo a sua essência e segundo a razão que estabelece a sua natureza, a virtude é uma mediação, mas em relação ao bem e à perfeição ela está no ponto mais elevado.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco)

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A ética platônica

De acordo com a Teoria das Idéias, só é possível encontrar a verdade sobre as coisas ao se alcançar o mundo inteligível – tarefa que é iniciada por meio do reconhecimento do caráter ilusório e transitório do mundo acessível pelos sentidos.

Para Platão, a alma humana (assim como a cidade) tem três partes: a parte racional (que busca o conhecimento), a parte irascível (na qual se produzem as emoções e que provocam o desejo de mandar) e a parte apetitiva (que busca o prazer das sensações).

Uma pessoa somente pode realizar as melhores ações caso esteja sob a influência da parte racional da alma. Em outras palavras, a ação boa, justa, correta é conseqüência do uso da razão.

Abaixo está reproduzida parte do Livro IX de A República. Nessa passagem, Platão, sob o personagem de Sócrates, procura demonstrar que a parte racional da alma deve ser a parte privilegiada pelo ser humano.

 

TEXTO DE APOIO

 

SÓCRATES – Há algo com que o homem compreende, algo com o que se encoleriza e uma terceira coisa para a qual, devido à variedade de suas aparências, não podemos encontrar uma denominação adequada, mas a designamos de acordo com o elemento que nela predomina: chamamos-lhe apetitiva pela violência dos apetites correspondentes ao comer e ao beber, aos prazeres eróticos e tudo mais que diz respeito aos sentidos; e também lhe chamamos avarenta ou ávida de riquezas, por ser sobretudo com estas que se satisfazem tais desejos.

GLÁUCON – E com razão o fizemos.

SÓCRATES – E se disséssemos que os seus prazeres e inclinações se relacionam com o ganho, não teríamos aí uma idéia central e um marco evidente para assinalar essa parte da alma? Não seria acertado, pois, chamar-lhe cobiçosa e desejosa de ganho?

GLÁUCON – Concordo contigo.

SÓCRATES – E o que mais? Não dissemos da parte irascível que tende inteira e constantemente para o mando, a vitória e a fama?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – Não seria, pois, adequado chamar-lhe arrogante e ambiciosa?

GLÁUCON – Muito adequado.

SÓCRATES – Quanto àquela outra parte com que compreendemos, é evidente a todo mundo que toda ela se dirige para o conhecimento da verdade e menos que às outras lhe importam as riquezas ou a fama.

GLÁUCON – Muito menos.

SÓCRATES – “Amante da ciência” ou “do saber” são, pois, as denominações que melhor lhe assentam?

GLÁUCON – Perfeitamente.

SÓCRATES – E não é verdade que na alma de certos homens prevalece este princípio e na de outros algum dos dois restantes, conforme o caso?

GLÁUCON – Assim é.

SÓCRATES – Podemos, pois, pressupor a existência de três classes de homens: o filósofo, o ambicioso e o avaro?

GLÁUCON – De pleno acordo.

SÓCRATES – E que são três as espécies de prazeres, correspondentes a cada um deles?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – Ora, se fores perguntar sucessivamente a cada um desses homens qual de suas vidas respectivas é mais agradável, cada qual exaltará a sua própria e depreciará as dos outros. E o avaro fará ressaltar a vaidade das honras ou do saber em contraste com o ganho, a menos que aqueles possam render dinheiro, não é assim?

GLÁUCON – É verdade.

SÓCRATES – E o que dirá o ambicioso? Não considerará grosseiro o prazer da riqueza, enquanto o do saber não passa, para ele, de fumaça e futilidade se a Ciência não traz honra consigo?

GLÁUCON – Assim é.

SÓCRATES – E havemos de crer que o filósofo dê algum valor aos outros prazeres em comparação com o de conhecer a verdade tal como é em si e de aprender constantemente alguma coisa a esse respeito? Não pensará que estão bem longe do prazer verdadeiro e não lhes chamará com razão prazeres forçosos, significando com isso que os dispensaria de bom grado se não fosse a necessidade?

GLÁUCON – É preciso conhecê-los bem.

SÓCRATES – Já que estão, pois, em discussão os prazeres de cada classe e as respectivas maneiras de viver, não para saber-se qual é a mais decorosa ou ignominiosa, nem a melhor ou pior, porém qual é a mais agradável e isenta de pesares – como poderemos determinar qual desses homens fala a verdade?

GLÁUCON – Eu não saberia dizê-lo.

SÓCRATES – Bem, mas qual deve ser o critério? Haverá algum melhor do que a experiência, o saber e a razão?

GLÁUCON – Como pode haver?

SÓCRATES – Então reflete nisto: dos três indivíduos, qual é o que tem maior experiência de todos os prazeres que enumeramos? Acaso o avaro, no que toca a conhecer a verdade em si mesma, terá mais experiência do prazer de conhecer do que tem o filósofo do prazer do ganho?

GLÁUCON – O filósofo leva aí grande vantagem, pois necessariamente provou todos os outros prazeres desde sua meninice, enquanto o avaro, se por acaso tenta estudar as essências, não é forçoso que saboreie a doçura desse prazer nem que adquira experiência dele. Digo mais: isso não lhe seria nada fácil, ainda que desejasse.

SÓCRATES – Então o filósofo leva grande vantagem ao avaro no que tange à experiência desses dois prazeres?

GLÁUCON – Sim, muito grande.

SÓCRATES – E passando agora ao ambicioso: terá ele menos experiência do prazer das honras que este do prazer de raciocinar?

GLÁUCON – Não, todos três são honrados na medida em que realizam suas aspirações. Tanto o homem rico quanto o valente ou o sábio possuem sua multidão de admiradores, de modo que todos têm experiência do prazer que proporciona o ser honrado pelos demais. Mas o deleite que dá a contemplação do ser, só o filósofo o conhece.

SÓCRATES – Portanto, sua experiência o capacita a julgar melhor que os outros dois?

GLÁUCON – Muito melhor.

SÓCRATES – E será, além disso, o único que tenha essa experiência ajudada pelo entendimento.

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – Por outro lado, o instrumento com que se deve julgar não é próprio do avaro nem do ambicioso, mas unicamente do filósofo.

GLÁUCON – Que instrumento?

SÓCRATES – Não dissemos que era à razão que cabia decidir?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – E a razão é o instrumento próprio do filósofo.

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – Se o critério consistisse na riqueza e no ganho, a aprovação ou reprovação do avaro teria, forçosamente, o máximo valor de prova.

GLÁUCON – Forçosamente.

SÓCRATES – E se fosse preciso julgar com a honra, a vitória e a valentia, não residiria a verdade na opinião do homem ambicioso e arrogante?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – E se é a experiência, ao entendimento e ao raciocínio que compete julgar?

GLÁUCON – Nesse caso, não se pode fugir à conclusão: o maior grau de verdade se encontra na aprovação do filósofo.

SÓCRATES – Chegamos, pois, a este resultado: o prazer da parte inteligente da alma é o mais deleitoso dos três e a vida mais agradável é a do homem em que essa parte governa o resto.

GLÁUCON – Sem dúvida, o homem sábio fala com autoridade quando louva a sua própria existência.

SÓCRATES – E quais serão a vida e o prazer que esse juiz coloca em segundo lugar?

GLÁUCON – Evidentemente, os do homem guerreiro e ambicioso, que estão mais próximos dos seus que os do homem de negócio.

SÓCRATES – E em último lugar vem o avaro?

GLÁUCON – Não se pode julgar de outro modo.

SÓCRATES – (…) Um sábio me sussurra ao ouvido que nenhum prazer é completo nem puro, salvo o do filósofo; todos os demais não passam de sombras. E esta é, para o injusto, a maior e a mais decisiva das quedas.

GLÁUCON – Com efeito; mas como explicas isto?

SÓCRATES – Alcançarei a explicação por meio de perguntas, se tu me responderes.

GLÁUCON – Pergunta, pois.

SÓCRATES – Dize-me: não será a dor o contrário do prazer?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – E, além desses dois, não existe um estado neutro, que é o de quem não sente prazer nem dor?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – Um estado intermediário, uma espécie de repouso da alma entre os dois? Não é isso que dizes?

GLÁUCON – Isso mesmo.

SÓCRATES – E não te lembras do que costumam dizer as pessoas quando estão doentes?

GLÁUCON – Que é?

SÓCRATES – Que não há nada mais doce do que estar são, mas que não sabiam disso antes de adoecer.

GLÁUCON – Lembro-me agora.

SÓCRATES – E, do mesmo modo, ouves dizer aos que acabam de passar por uma dor violenta que não há nada mais delicioso do que a cessação da dor?

GLÁUCON – Ouço, de fato.

SÓCRATES – E não há muitas outras espécies de sofrimento em que o simples descanso e a cessação da dor, e não qualquer gozo positivo, são louvados por eles como o maior dos prazeres?

GLÁUCON – Sim, talvez seja esse descanso o que então lhes parece deleitoso e apetecível.

SÓCRATES – Mas, por outro lado, quando cessa o prazer que sente alguém, essa espécie de descanso ou de cessação lhe será dolorosa?

GLÁUCON – Sim, talvez.

SÓCRATES – Portanto, o estado intermediário de repouso será de certo modo ambas as coisas: prazer e dor.

GLÁUCON – Assim parece.

SÓCRATES – E é possível que, não sendo nenhuma das duas coisas, venha a converter-se numa e na outra?

GLÁUCON – Creio que não.

SÓCRATES – E tanto o prazer como a dor são movimentos da alma, não é verdade?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – Mas acabamos de mostrar que aquilo que não é uma coisa nem outra está em repouso e não em movimento, ocupando uma posição intermediária entre ambas?

GLÁUCON – Mostramos, sim.

SÓCRATES – Como é possível afirmar, então, que a ausência de dor seja prazer, ou vice-versa?

GLÁUCON – Impossível.

SÓCRATES – Portanto, o sossego não é, mas apenas parece ser agradável em face do doloroso, e doloroso em face do agradável; e todas essas impressões nenhuma realidade têm quando aferidas pela essência do prazer, mas constituem uma espécie de impostura?

GLÁUCON – É, pelo menos, o que se conclui do teu raciocínio.

SÓCRATES – Considera a classe de prazeres que não são precedidos de dores, e deixarás de acreditar, como talvez acredites agora, que o prazer consiste na cessação da dor e a dor, na cessação do prazer.

GLÁUCON – Quais são esses e onde os encontrarei?

SÓCRATES – São em grande número. Toma, por exemplo, os prazeres do olfato: estes se produzem de imediato e com extraordinária intensidade, e ao cessarem não deixam dor alguma.

GLÁUCON – Muito certo, isso.

SÓCRATES – Não nos convencerá, pois, essa história de que a cessação da dor é um prazer e a cessação do prazer, uma dor.

GLÁUCON – Não, com efeito.

SÓCRATES – No entanto, os chamados prazeres que chegam à alma pelo caminho do corpo, e que talvez sejam os mais numerosos e violentos, pertencem a esta classe: são alívios da dor.

GLÁUCON – É verdade.

SÓCRATES – E não têm a mesma índole os pressentimentos de futuros prazeres e dores, nascidos da expectativa?

GLÁUCON – A mesma.

SÓCRATES – Queres que te mostre isso por meio de uma imagem?

GLÁUCON – Ouçamos.

SÓCRATES – Admites que existe na natureza uma região superior, uma inferior e uma intermediária?

GLÁUCON – Admito.

SÓCRATES – E se uma pessoa fosse transportada da inferior para a intermediária, não imaginaria que estava subindo ao cume? E quando estiver no meio, contemplando o seu ponto de partida, não suporá que se encontra já nas alturas, se nunca vi a altura verdadeira?

GLÁUCON – Evidentemente. Como poderia pensar de outro modo?

E se fosse levada de novo a esse ponto de partida, não pensaria, desta vez com razão, que a estavam levando para baixo?

GLÁUCON – Pois claro.

SÓCRATES – E tudo isso se deveria à sua ignorância do que é verdadeiramente o alto, o baixo e o intermediário?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – Como admirar-se, então, de que aqueles que não conhecem a verdade, além de terem opiniões ilusórias acerca de muitas outras coisas, também encarem de tal modo o prazer, a dor e o que se encontra no meio de ambos que, quando são arrastados à dor, se sintam realmente e com razão doloridos, mas, quando passam da dor ao estado intermediário, convencem-se de ter alcançado a satisfação e o prazer – e, como alguém que, por não conhecer o branco, visse no cinzento o contrário do negro, também eles, por ignorância do prazer, se enganam vendo na ausência de dor o contrário desta?

GLÁUCON – Não me admiro disso, por Zeus! Antes me admiraria se não fosse assim.

SÓCRATES – Atenta agora para esta outra coisa: a fome, a sede e outros estados semelhantes não são como uma espécie de vazios na disposição do corpo?

GLÁUCON – Perfeitamente.

SÓCRATES – E a ignorância e a insensatez não são, por outro lado, vazios e inanições da alma?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – E não encheria esses vazios o que tomasse alimento ou adquirisse inteligência?

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – E qual é a plenitude mais verdadeira: a do que tem mais realidade ou a do que tem menos?

GLÁUCON – A do que tem mais, é claro.

SÓCRATES – E qual dos dois gêneros de coisas acreditas que participa mais da existência pura: aquelas de que fazem parte o pão, os condimentos, a bebida e os demais alimentos, ou a classe em que se incluem a opinião verdadeira, o conhecimento, a inteligência e as diferentes espécies de virtude? Formulemos a pergunta de outro modo: que é mais real, o que se ocupa com o invariável, o imortal e o verdadeiro, possuindo, ademais, esses mesmos atributos e produzindo-se em algo de sua mesma índole, ou o que se atém ao mortal e variável, sendo assim ele próprio e produzindo-se no que é de sua mesma natureza?

GLÁUCON – É muito superior o que se refere ao invariável.

SÓCRATES – E a essência do que sempre muda terá mais realidade do que a da ciência?

GLÁUCON – De modo algum.

SÓCRATES – E terá mais verdade?

GLÁUCON – Tampouco.

SÓCRATES – E, tendo menos verdade, terá também menos realidade?

GLÁUCON – É forçoso.

SÓCRATES – Assim, pois, de um modo geral, as espécies de coisas que estão a serviço do corpo têm menos verdade e realidade que as atinentes ao serviço da alma?

GLÁUCON – Muito menos.

SÓCRATES – E não crês que o mesmo se possa dizer do próprio corpo em relação à alma?

GLÁUCON – Sim, por certo.

SÓCRATES – Portanto, o que é mais real em si mesmo e está cheio de coisas mais reais está realmente mais cheio do que o cheio de coisas menos reais e que, além disso, é menos real em si mesmo?

GLÁUCON – Naturalmente.

SÓCRATES – De modo que, se o encher-se de coisas congêneres com a natureza proporciona prazer, o que se enche mais realmente e de coisas mais reais gozará de um prazer mais verdadeiro e autêntico; e o que participa de coisas menos reais se encherá de maneira menos real e sólida e gozará um prazer menos seguro e verdadeiro.

GLÁUCON – É indubitável.

SÓCRATES – Por isso, os faltos de inteligência e virtude, que sempre andam ocupados com a glutonaria e a sensualidade, são arrastados alternativamente para baixo e para cima até a metade da subida, e assim passam a vida inteira; sem jamais ultrapassarem esse ponto, não vêem nem alcançam a verdadeira altura, nem se enchem realmente do que é real, nem desfrutam de um prazer puro e duradouro. São como reses que, a olhar sempre para baixo e com a cabeça inclinada para a terra – isto é, para as suas mesas – cevam-se de pasto, engordam, acasalam-se e, no seu amor excessivo desses deleites, escoiceiam-se e marram-se umas às outras com cascos e chifres de ferro, e se matam mutuamente, levadas por sua avidez insaciável, porque não enchem de coisas reais o seu ser real e sua parte apta para conter aquelas.

(PLATÃO. A República, livro IX)

O Escândalo do Climagate – por Delgado Domingues

Reproduzo um artigo publicado pelo Expresso Online e descoberto por meio do De Rerum Natura a respeito da divulgação de uma escandalosa manipulação dos dados do clima. O prof. Delgado Domingues gentilmente autorizou sua reprodução.

O ESCÂNDALO DO CLIMAGATE E A CONFERÊNCIA DE COPENHAGA

O caso Climategate, onde se manipularam dados para provar o aquecimento global, é um dos maiores escândalos científicos da História, pelo modo como afecta a credibilidade pública da comunidade científica e sobretudo pelas suas implicações económicas e políticas.

Passaram há pouco 42 anos sobre um dos maiores desastres de origem climática em Portugal: as inundações de 1967 em Lisboa. Centenas de mortes e centenas de milhões de prejuízos materiais. Será que este desastre se deveu às emissões de CO2eq (CO2 equivalente) ou ao aquecimento global? Claro que não!

Aliás, na altura, a imprensa internacional explorava os receios de uma nova idade do gelo devido ao arrefecimento global que se verificava.

Em 1967, a probabilidade de ocorrência da precipitação que provocou o desastre em Lisboa era conhecida. Uma precipitação com características análogas pode repetir-se amanhã e as suas consequências só serão menores se as necessárias medidas de prevenção forem entretanto tomadas (e nem todas o foram!).

Catástrofe de Nova Orleães não foi causada pelo aquecimento global

O que se passou com a destruição de Nova Orleães pelo furacão Katrina foi análogo: as consequências de um furacão com aquelas características eram bem conhecidas, e as imprescindíveis obras de reparação e reforço das protecções foram insistentemente pedidas mas sistematicamente adiadas.

A catástrofe não teve nada que ver com emissões de CO2eq ou aquecimento global. As tragédias climáticas no Bangladesh não são provocadas por emissões de CO2eq, aquecimento global ou subida do nível do mar, mas sim pelas inundações resultantes do assoreamento dos rios originado pela erosão que as extensíssimas desflorestações a montante agravaram e pelo crescente aumento do número de habitantes e construções em leito de cheia.

Segundo a ONU, mais de mil milhões de pessoas estão actualmente ameaçadas pela fome ou subnutrição, e agita-se o fantasma do seu aumento ou das suas migrações massivas se não forem combatidas as emissões de CO2eq para reduzir o aquecimento global.

A situação dramática e escandalosa destes milhões de seres humanos não tem nada a ver com as emissões de CO2eq, nem com o aumento oficial de 0,8 ºC na temperatura média global nos últimos 150 anos.

Temperaturas não aumentam desde 1998

Aliás, apesar de as emissões de CO2eq terem aumentado acima do cenário mais pessimista do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) da ONU, desde 1998 que a temperatura global não aumenta.

Os exemplos anteriores poderiam continuar mas a conclusão seria sempre a mesma: as consequências catastróficas de fenómenos climáticos são evidentes e têm aumentado devido a acções humanas.

O que sucedeu em 1967 em Lisboa e se repete cada vez mais agravado por esse mundo fora não é devido a emissões de CO2eq ou alegado aquecimento global.

É devido simplesmente ao facto de fenómenos climáticos naturais, que sempre existiram, terem efeitos cada vez mais catastróficos porque as acções humanas sobre o território criaram as condições para isso ao desflorestarem as cabeceiras de rios (que agravaram o seu assoreamento e as consequentes inundações), ao aumentarem os riscos de deslizamento das encostas (porque eliminaram a vegetação que as estabilizava), ao construírem cada vez mais em leitos de cheia, e ao provocarem alterações cada vez mais extensas e profundas no uso do solo.

Os efeitos das alterações no uso do solo são cada vez mais evidentes nas alterações climáticas locais e nos seus reflexos globais.

Sendo evidente que a variabilidade natural do clima sempre existiu e que as acções humanas têm vindo a agravar os seus efeitos, a subversão conceptual que a União Europeia liderou, reduzindo tudo, ou quase tudo, às consequências do aquecimento global provocado por emissões de CO2eq é muito grave e, em última instância, contrária aos louváveis ideais que afirma defender e que suscitam o apoio das organizações ambientalistas e de multidões de bem intencionados.

Um dos maiores escândalos científicos da História

É neste contexto que rebenta o escândalo do chamado Climategate. Em termos da comunidade científica, o Climategate é um dos maiores escândalos científicos da História, não só pelo modo como afecta a credibilidade pública da comunidade científica mas sobretudo pelas implicações económicas e políticas de que se reveste.

De facto, nunca existiram tantas declarações, tantos tratados, tantos protocolos e tão gigantescos fluxos financeiros tendo como único fundamento a credibilidade e o suposto consenso da comunidade científica expresso nos Summary for Policy Makers (SPM) do IPCC.

Esse fundamento desapareceu, mas os interesses envolvidos (políticos, económicos, financeiros e industriais) são de tal monta e a percepção pública da fraude científica é tão lenta que a ficção criada pela UE ainda se irá manter durante muito tempo.

O Climagate consistiu na divulgação, através da Internet, de um conjunto de ficheiros, que incluem programas de computador e emails trocados entre alguns dos principais autores dos relatórios do IPCC, de entre os quais assumem particular relevo os de Phil Jones, director do Climate Research Unit (CRU) da Universidade de East Anglia e Hadley Centre (Reino Unido), de autores do notório hockeystick e instituições responsáveis pelas bases de dados climáticos, como o National Climate Data Center (NCDC) e o Goddard Institute for Space Studies (GISS) dos EUA, consideradas de referência pelo IPCC.

O hockeystick é o termo usado entre os cientistas para designar o gráfico em forma de stick de hóquei que representa a evolução das temperaturas do hemisfério norte nos últimos mil anos, e que foi criado por um grupo de cientistas norte-americanos em 1998.

Manipulação de dados

Os referidos ficheiros encontravam-se num servidor do CRU e a sua autenticidade não foi até agora contestada. Aliás, muitos deles apenas confirmam o que há muito se suspeitava acerca da manipulação/fabricação de dados pelo grupo.

Todavia, muito do que era suspeito e atribuível a erro humano surge agora como intencional e destinado a manter a “verdade” (do IPCC) de que houve um aquecimento anormal e acelerado desde o início da revolução industrial devido à emissões de CO2eq.

Esta “verdade” é incompatível com o Período Quente Medieval (em que as temperaturas foram iguais ou superiores às actuais apesar de não existirem emissões de CO2eq) e a Pequena Idade do Gelo que se seguiu. É também incompatível com o não aquecimento que se verifica desde 1998. Esconder ou suprimir estas constatações foram objectivos centrais da fraude científica agora conhecida.

Silenciar os cientistas críticos

Em termos científicos, o que os emails revelam são os esforços concertados dos seus autores, junto de editores de revistas prestigiadas, para não acolher publicações que pusessem em causa as suas teses ou os dados utilizados pelo grupo, recorrendo mesmo a ameaças de substituição de editores ou de boicote à revista que não se submetesse aos seus desígnios.

Propuseram-se mesmo alterar as regras de aceitação das publicações para consideração nos Relatórios do IPCC de modo a suprimir as críticas fundamentadas às suas conclusões. Em resumo, procuraram subverter, em seu benefício, toda a ética científica da prova, da contraprova e de replicação de resultados que está no cerne do método científico, controlando o próprio processo da revisão por pares.

Em conjunto, conseguiram impedir que fossem publicados a maioria dos dados e conclusões que pusessem em causa e com fundamento o seu dogma do aquecimento global devido às emissões de CO2eq.

O Climategate provocou já uma invulgar reacção internacional, como uma simples pesquisa no Google imediatamente revela (mais de 10.600.000 referências menos de uma semana depois da sua revelação).

No intenso debate internacional em curso e que irá certamente continuar por muitos meses/anos, surgiram já todos os habituais argumentos de ilegalidade no acesso aos documentos; de idiossincrasias próprias de cientistas-estrelas que se sentiram incomodados; citações fora de contexto, etc.

Em meu entender, o mais revelador e incontestável nos ficheiros divulgados nem são os emails, apesar do que mostram quanto ao carácter e a honestidade intelectual dos cientistas intervenientes, mas sim os programas de computador para tratar os registos climáticos que utilizaram para justificar as conclusões que defendem.

Diga-se o que se disser, os programas executaram o que está nas suas instruções e não o que os seus autores agora vêem dizer que fizeram ou queriam fazer.

Dados climáticos até 1960 destruídos

Antecipando porventura o que agora sucedeu, os responsáveis pelos dados climáticos de referência arquivados no CRU, vieram publicamente confirmar que destruíram os dados das observações instrumentais até 1960 e que apenas retiveram o resultado dos tratamentos correctivos e estatísticos a que os submeteram.

Ou seja, tornaram impossível verificar se tais dados foram ou não intencionalmente manipulados para fabricar conclusões. Neste momento há provas documentais indirectas de que o fizeram pelo menos nalguns casos.

Existe ainda um efeito perverso na referida manipulação que resulta de os modelos climáticos utilizados para a previsão do futuro terem parâmetros baseados nas observações climáticas passadas, que agora estão sob suspeita.

Afecta também todas as calibrações de observações indirectas relativas a situações passadas em que não existiam registos termométricos.

Independentemente de tudo isto, o mais perturbador para os alarmistas é o facto de, contrariamente ao que os modelos utilizados pelo IPCC previam, não existir aquecimento global desde 1998, apesar do crescimento das emissões de CO2eq.

E se alguma coisa os ficheiros do Climagate revelam são os esforços feitos para que este facto não fosse do conhecimento público.

Comportamento escandaloso e intolerável

O comportamento escandaloso e intolerável de um grupo restrito de cientistas que atraiçoaram o que de melhor a Ciência tem só foi possível porque um grupo de políticos, sobretudo europeus, criou as condições para o tornar possível.

Isso ficou claro desde a criação do IPCC e torna-se evidente para quem estuda os relatórios-base do IPCC (WG1-Physical Science Basis) e os confronta com os SPM.

Todavia, seria profundamente injusto meter todos os cientistas no mesmo saco, pelo que é oportuno lembrar que se deve a inúmeros cientistas sérios e intelectualmente rigorosos uma luta persistente e perigosa contra os poderes estabelecidos, para que a ciência do IPCC fosse verificável e responsável.

Foram vilipendiados e acusados de estar ao serviço dos mais torpes interesses. Os documentos agora revelados mostram que estavam apenas ao serviço da Ciência e do rigor e honestidade dos métodos que fizeram a sua invejável reputação.

Seria também irresponsável agir como se as consequências da variabilidade climática e da utilização desbragada de combustíveis fósseis tivesse desaparecido com a revelação do escândalo. Muito pelo contrário.

Problemas ambientais de fundo devem ser atacados

Chame-se variabilidade climática ou alteração climática, os problemas de fundo da sustentabilidade ambiental permanecem e agravam-se pelo que devem ser atacados com determinação e realismo.

Se os esforços internacionais mobilizados para a Cimeira de Copenhaga conseguirem ultrapassar a obsessão do aquecimento/emissões (liderado pela União Europeia) para se concentrarem na eficiência energética, nas energias renováveis, na minimização dos efeitos das alterações nos usos do solo, no combate à desflorestação, à fome e aos efeitos da variabilidade climática, teremos uma grande vitória para o planeta se a equidade e a justiça social não forem esquecidas.

Ao que parece, as propostas da China e dos EUA vão neste sentido tendo a delicadeza suficiente para não humilhar a União Europeia. Esperemos que sim.

J. J. Delgado Domingues

A influência dos costumes sobre a moral – por Adam Smith

A INFLUÊNCIA DOS COSTUMES SOBRE AS NOSSAS NOÇÕES DE BELEZA

Quando dois objetos são frequentemente vistos juntos, a imaginação adquire um hábito de passar facilmente de um a outro. Quando o primeiro aparece, acreditamos que o segundo vai seguir. Por si mesmos, um nos faz lembrar o outro, e a atenção desliza facilmente por entre eles. Ainda que, independentemente do costume, não haja verdadeira beleza na sua união, uma vez que o costume os associou dessa maneira, experimentamos uma inconveniência em sua separação. Julgamos um deles desajeitado quando aparece sem seu usual acompanhamento. Sentimos falta de algo que esperávamos encontrar, e a habitual disposição de nossas ideias perturba-se com essa frustração. Um traje, por exemplo, parece carecer de algo, se não está presente o mais insignificante adorno que habitualmente o acompanha, e reputamos vulgar ou inconveniente até mesmo a ausência de um botão. Quando existe alguma conveniência natural na união, o costume aumenta nosso senso dela, e faz uma disposição diferente parecer ainda mais desagradável do que de outro modo seria. Os que se acostumaram a ver coisas de bom gosto aborrecem-se ainda mais com tudo que seja grosseiro ou desajeitado. Quando a conjunção é imprópria, o costume reduz ou remove inteiramente nosso senso de inconveniência. Os que se acostumaram à desordem desleixada perdem todo o seu senso de esmero e elegância. As modas de mobília e roupa que parecem ridículas para estrangeiros não insultam os que se habituaram a elas. […]

O mundo todo concede que as vestes e a mobília estejam inteiramente sob domínio dos usos e costumes. Porém, de modo algum a influência desses princípios se limita a uma esfera tão estreita, estendendo-se a tudo o que de algum modo seja objeto de gosto – música, poesia, arquitetura. As modas de roupa e mobília estão em constante mudança; e a experiência nos convence de que estilos, ridículos hoje, mas admirados cinco anos atrás, devem sua voga principal ou inteiramente aos costumes e usos. Roupas e mobília não são feitas de materiais muito duráveis. […]

Um artista eminente deseja provocar uma considerável mudança nos modos estabelecidos de cada uma dessas artes, e introduzir um novo feitio para a escrita, música ou arquitetura. As vestes de um agradável homem de alta posição se recomendam por si, e, por mais peculiares e fantásticas que sejam, em breve serão admiradas e copiadas. Do mesmo modo, as excelências de um mestre eminente recomendam sua peculiaridades, e suas maneiras tornam-se o estilo da moda na arte que pratica. […]


A INFLUÊNCIA DOS COSTUMES SOBRE OS SENTIMENTOS MORAIS

Uma vez que nossos sentimentos relativos a todas as espécies de beleza sofrem a influência dos usos e costumes, não se pode esperar que os sentimentos relativos à beleza da conduta estejam inteiramente isentos do domínio desses princípios. Porém, aqui sua influência parece muito menor do que em todo o resto. Talvez não haja uma forma para os objetos externos, por mais absurda e fantástica, com a qual o costume não venha a nos reconciliar, ou que o uso não torne até mesmo agradável a nós. Mas o caráter e a conduta de um Nero ou de um Cláudio é algo com que costume algum jamais nos reconciliará, e uso algum jamais tornará agradável; um sempre será objeto de horror e ódio, o outro, de escárnio e zombaria. Os princípios da imaginação, dos quais depende nosso senso de beleza, são de natureza muito sutil e delicada, e podem ser facilmente alterados por hábito e educação; os sentimentos de aprovação e desaprovação moral, contudo, fundamentam-se nas mais fortes e vigorosas paixões da natureza humana e, ainda que possam de alguma forma ser distorcidos, nunca podem ser inteiramente pervertidos.

Embora a influência dos usos e costumes sobre os sentimentos morais nunca seja tão grande, é todavia perfeitamente semelhante à que ocorre em todos os outros casos. Quando os usos e costumes coincidem com os princípios naturais do certo e do errado, aumentam a delicadeza de nossos sentimentos, e intensificam nosso horror a tudo que se aproxime do mal. Os que realmente foram educados junto à boa companhia, e não junto ao que habitualmente se chama assim, que foram acostumados a enxergar nas pessoas a quem estimam e com quem convivem nada além de justiça, modéstia, humanidade e boa disposição, ficam mais agastados com tudo que pareça inconsistente com as regras prescritas por essas virtudes. Ao contrário, os que tiveram o infortúnio de ser criados no meio da violência, licenciosidade, falsidade e injustiça, perdem não apenas todo o senso da inconveniência de tal conduta, mas ainda todo o senso de sua terrível enormidade, ou da vingança e castigo que lhe são devidos. Familiarizam-se com esses vícios desde a infância, o costume tornou-os habitual, e estão muito predispostos a considerá-los como o que se chama o jeito do mundo, algo que pode ou deve ser praticado para impedir que sejamos logrados por nossa própria integridade.

Também o uso por vezes dará reputação a certo grau de desordem, e, ao contrário, desencorajará qualidades que merecem estima. No reinado de Carlos II, certa licenciosidade foi considerada característica de uma educação liberal. Segundo as noções da época, estaria associada à generosidade, sinceridade, magnanimidade, lealdade, e provava que quem agia dessa maneira era um cavalheiro, não um puritano. De outro lado, severidade nos hábitos e conduta regular estavam inteiramente fora de moda, associando-se, na imaginação daquele tempo, com arenga, astúcia, hipocrisia e modos vulgares. Para espíritos superficiais, os vícios dos grandes em todos os tempos parecem agradáveis. Associam-nos não apenas ao esplendor da fortuna, mas também a muitas virtudes superiores que atribuem aos que lhes são superiores; ao espírito de liberdade e independência, à franqueza, generosidade, humanidade e polidez. As virtudes da gente de posição social inferior, ao contrário, sua parcimoniosa frugalidade, sua penosa diligência, sua adesão rígida a regras, parecem-lhes vulgares e desagradáveis. Associam-nas tanto à vileza da posição a que essas qualidades comumente pertencem, como a inúmeros e imensos vícios que, supõem, acompanham-nas habitualmente, tais como uma disposição abjeta, covarde, doentia, mentirosa e baixa.

Como os objetos com os quais homens das diferentes profissões e posições estão familiarizados são muitos diferentes, habituando-os a paixões muito diferentes, naturalmente formam-se neles caracteres e modos muito diversos. Supomos em cada camada social e profissão um grau dos modos que, ensina-nos a experiência, pertencem a elas. Porém, assim como nos agrada particularmente em cada espécie de coisas a confirmação mediana que, em toda parte e feição, coincide mais precisamente com o padrão geral que a natureza parece ter estabelecido para coisas desse tipo, em cada camada social, ou, se me permitem dizer, em cada espécie de homens, agrada-nos particularmente não terem nem demais nem de menos do caráter que habitualmente acompanha sua condição e situação particular. Dizemos que um homem deveria parecer-se com seus negócios e sua profissão e seus assuntos, embora o pedantismo de cada profissão seja desagradável. […]

Da mesma maneira, as diferentes situações de diferentes épocas e países tendem a atribuir diversos caracteres à generalidade dos que neles vivem, e seus sentimentos relativos ao grau específico de cada qualidade louvável ou censurável variam segundo o grau comum em seu próprio país e seu próprio tempo. O grau de polidez que seria de estimar profundamente talvez fosse visto na Rússia como adulação afeminada e, na corte da França, como grosseria e barbarismo. O grau de ordem e frugalidade que se consideraria excessiva parcimônia num nobre polonês seria visto como extravagância num cidadão de Amsterdam. Toda época e país considera o grau de cada qualidade que habitualmente se encontra nos homens respeitáveis como o ponto médio do talento ou virtude particular, e, como isso varia conforme as diversas circunstâncias tornem diferentes qualidades mais ou menos habituais, por conseguinte variam os sentimentos relativos à exata conveniência de caráter e comportamento.

(SMITH, Adam. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Martins Fontes, 1999)

O uso de células-tronco embrionárias: um problema filosófico

A discussão a respeito do uso de células-tronco embrionárias na pesquisa científica coloca em confronto, basicamente, duas perspectivas éticas: a perspectiva objetivista e a perspectiva utilitarista. Vou expor bem basicamente o problema como eu vejo.

A perspectiva moral objetivista é defendida por todos os que dizem que a vida humana tem valor objetivo, ou seja, que seria uma ação moralmente má aquela que causa dano a qualquer vida humana. A perspectiva objetivista é adotada, por exemplo, pela Igreja.

A perspectiva utilitarista é defendida por todos os que dizem que toda ação deve maximizar os benefícios e minimizar os malefícios. Assim, se o uso de células-tronco de embriões pode levar à descoberta da cura de doenças que causam sofrimento em milhões de pessoas, é moralmente lícito fazer as pesquisas. Afinal, o utilitarismo propõe um “cálculo moral” para cada ação: se a ação resultar em maior benefícios e em menores danos para a maior parte da população, é uma ação moralmente boa. A maior parte dos cientistas envolvidos na discussão adota a perspectiva utilitarista.

A posição objetivista é fortalecida com o argumento de que os embriões humanos são vidas humanas inocentes e incapazes de se defender. Mas é enfraquecida pelo argumento de que os embriões humanos não são pessoas, mas apenas potencialmente pessoas. Além disso, o objetivismo moral, quando levado às últimas consequências, pode justificar políticas contrárias à liberdade individual das pessoas, por propor que há um bem moral objetivo e que as pessoas podem vir a enganar-se quanto ao que é melhor para elas.

A posição utilitarista é é fortalecida justamente pelo argumento que diz que os embriões não são estritamente pessoas, e, portanto, não são portadores de direitos por si, mas apenas de direitos concedidos pelas pessoas. Mas o utilitarismo é enfraquecido pelo argumento dos objetivistas de que não apenas as pessoas humanas, mas todos os seres humanos, são portadores de direitos. O utilitarismo moral tem ainda outro ponto fraco, quando levado às consequências extremas: pode justificar políticas que causem dano a uma pessoa ou a um grupo de pessoas inocentes para causar um benefício maior a um grupo mais significativo de pessoas.

Temos aqui duas posições éticas diferentes e irredutíveis. Os princípios que norteiam uma são totalmente diferentes dos princípios que norteiam a outra. Não sei o que faz com que um juiz venha a decidir-se por uma posição ou por outra, mas gostaria que eles pelo menos soubessem localizar-se no mapa ético do problema, e que tivessem consciência das possíveis consequências éticas e políticas que cada uma das posições acarreta.

Obedecer à autoridade

O que leva alguém a obedecer à autoridade, ainda que a autoridade exija a ação contrária às inclinações pessoais?

Se você procura compreender os mecanismos da obediência e da autoridade, eu recomendo que você leia alguns artigos sobre três experimentos empreendidos entre os anos 60 e o início dos anos 70.

O primeiro que sugiro tem natureza psicológica; é o chamado Milgram experiment, realizado sob a orientação de Stanley Milgram em 1963.

Para ler o artigo original (em PDF): Milgram, Stanley – Behavoral study of obedience

Para ler uma boa introdução (em PDF): Muñoz, Ana – Obediencia a la autoridad, Los experimentos de Milgram

O segundo experimento é de natureza sociológica, é o chamado Stanford prison experiment, realizado sob a orientação de Phillip G. Zimbardo em 1971.

O site oficial que apresenta toda a experiência: http://www.prisonexp.org/

Será lançado um filme sobre a experiência em 2008, escrito e dirigido pelo vencedor do Oscar Christopher McQuarrie.

O terceiro experimento é pedagógico. The Third Wave foi uma experiência realizada pelo professor de História Ron Jones na escola em que trabalhava em 1967.

Recomendo veementemente a leitura do relato do próprio Ron Jones (em HTML):

http://web.archive.org/web/20080211081934/http://www.vaniercollege.qc.ca/Auxiliary/Psychology/Frank/Thirdwave.html

Espero que essas leituras possam deixar nossas consciências mais alertas para que escolhamos racionalmente se e quando devemos nos submeter à autoridade.