A questão de Lógica no 1o exame de qualificação da UERJ – vestibular 2016

Hoje de manhã, foi realizado o 1o exame de qualificação do vestibular de 2016 da UERJ.

Fui ver agora a prova. Uma das questões (a de número 14) me chamou a atenção. Ela diz:

Antônio Prata, ao comentar o ataque ao jornal Charlie Hebdo, construiu uma série de variações do argumento típico do método dedutivo, conhecido como “silogismo” e normalmente organizado na forma de três sentenças em sequência.

A organização do silogismo sintetiza a estrutura do próprio método dedutivo, que se encontra melhor apresentada em:

(A) premissa geral – premissa particular – conclusão

(B) premissa particular – premissa geral – conclusão

(C) premissa geral – segunda premissa geral – conclusão particular

(D) premissa particular – segunda premissa particular – conclusão geral

Há vários equívocos na questão.

Em primeiro lugar, não se pode afirmar que “o método dedutivo é conhecido também como silogismo”. Eles não são a mesma coisa. Todo silogismo é um caso de raciocínio dedutivo, mas nem todo raciocínio dedutivo é um silogismo. A dedução é uma operação mental; o silogismo é a forma lógica dessa operação.

Em segundo lugar, o texto diz que “normalmente o silogismo está organizado na forma de três sentenças em sequência”. O enunciado diz “normalmente”, mas o que é “normalmente”? Afinal, o silogismo pode também ter somente duas sentenças (entimema) ou mais de três (polissilogismo, sorites). Entimema, polissilogismo e sorites são tão casos de silogismo quanto o categórico: não são nem mais “normais” nem menos “normais”. A afirmação do enunciado é equivalente a dizer: “nas palavras de língua portuguesa, normalmente a consoante B é seguida da vogal A”. Não faz sentido. Há diferentes tipos de silogismo, e nenhum pode ser considerado “mais normal” que outro, do mesmo modo que não se pode considerar que uma sílaba seja considerada “mais normal” que outra. “Silogismo normal”… só se inventaram um novo tipo de raciocínio!

Em terceiro lugar, o comando da questão propõe que se indique “a melhor apresentação do silogismo” ou da “estrutura do método dedutivo”. Como assim, “silogismo melhor apresentado”, “estrutura do método dedutivo melhor apresentada”? Afinal, há inúmeras possibilidades de apresentar a estrutura lógica do silogismo, e não existe nenhuma razão racional para dizer que uma é “melhor” do que outra. Dizer que existe uma forma de expor o silogismo “melhor” do que outra expressa um juízo de valor, não uma regra lógica. Por isso, o comando da questão é, do ponto de vista lógico, absurdo.

Em quarto lugar, as alternativas dizem “premissa geral”, “premissa particular” et cetera, nessa linha. Ora, isso é simplesmente errado. Na lógica dedutiva não existe “premissa geral” nem “premissa particular”. Afinal, não se trata simplesmente da utilização de “termos gerais” (como “todos”) ou “particulares” (como “este”). É perfeitamente possível, por exemplo, fazer uma dedução somente utilizando “termos gerais”: “Todos os cariocas são fluminenses; todos os fluminenses são brasileiros; portanto, os cariocas são também brasileiros”. O que se utiliza em lógica dedutiva são “termo menor”, “termo médio” e “termo maior”, sem nenhuma relação necessária com ser “geral” ou “particular”. No exemplo dado, “carioca” é termo menor; “fluminense” é termo médio; “brasileiro” é termo maior. Por isso, não se pode falar em “premissa geral” nem “premissa particular”. O que temos no silogismo categórico é: uma premissa maior (que liga o termo médio ao termo maior); uma premissa menor (que liga o termo menor ao termo médio); e uma conclusão (que liga o termo menor ao termo maior, sem usar o termo médio).

Em quinto e último lugar, concluindo tudo o que foi dito acima, é simplesmente absurdo, errado, falso, dizer que a alternativa (A) – que seria a correta de acordo com o gabarito – é um exemplo “melhor” de silogismo do que a alternativa (B). Quer dizer que se for invertida a ordem da “premissa maior” (e não “premissa geral”) e da “premissa menor” (e não “premissa particular”), então o argumento deixa de ser um silogismo? Faça-me o favor!

Vou ilustrar isso tudo com um exemplo simples.

Veja:

(1) A prova de vestibular pode ter questões imperfeitas, pois é escrita por pessoas.

(2) A prova de vestibular é escrita por pessoas.

Logo, a prova de vestibular pode ter questões imperfeitas.

(3) Pessoas podem escrever questões imperfeitas.

A prova de vestibular é escrita por pessoas.

Logo, a prova de vestibular pode ter questões imperfeitas.

(4) As pessoas pertencem ao conjunto de seres que podem escrever questões de vestibular.

Questões imperfeitas podem ser escritas por pessoas.

Logo, provas de vestibular podem ter questões imperfeitas.

O raciocínio (1) é dedutivo, mas não está escrito sob a forma de silogismo.

O raciocínio (2) é dedutivo, é um silogismo, mas não apresenta uma de suas premissas: ele é um entimema, e tem uma de suas premissas meramente subentendida.

O raciocínio (3) é dedutivo, é um silogismo categórico, e apresenta primeiro a premissa menor e depois a premissa maior.

O raciocínio (4) é dedutivo, é um silogismo categórico, e apresenta primeiro a premissa maior e depois a premissa menor.

Todos são raciocínios dedutivos válidos (e olha que nem falamos de raciocínios dedutivos inválidos, que não deixam de ser raciocínios dedutivos por isso!). O argumento (1) é o único que não se constitui como silogismo. Todos os outros são silogismos perfeitamente “normais” (para falar como o enunciado). Não há um “melhor” (!) do que outro.

Mas, de acordo com a banca que formulou a questão da UERJ, somente o raciocínio (4) é um verdadeiro raciocínio dedutivo!!!

Como é possível que um conjunto tão completo de erros primários, grosseiros, totais tenha lugar numa questão de vestibular da UERJ?

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