A ética platônica

De acordo com a Teoria das Idéias, só é possível encontrar a verdade sobre as coisas ao se alcançar o mundo inteligível – tarefa que é iniciada por meio do reconhecimento do caráter ilusório e transitório do mundo acessível pelos sentidos.

Para Platão, a alma humana (assim como a cidade) tem três partes: a parte racional (que busca o conhecimento), a parte irascível (na qual se produzem as emoções e que provocam o desejo de mandar) e a parte apetitiva (que busca o prazer das sensações).

Uma pessoa somente pode realizar as melhores ações caso esteja sob a influência da parte racional da alma. Em outras palavras, a ação boa, justa, correta é conseqüência do uso da razão.

Abaixo está reproduzida parte do Livro IX de A República. Nessa passagem, Platão, sob o personagem de Sócrates, procura demonstrar que a parte racional da alma deve ser a parte privilegiada pelo ser humano.

 

TEXTO DE APOIO

 

SÓCRATES – Há algo com que o homem compreende, algo com o que se encoleriza e uma terceira coisa para a qual, devido à variedade de suas aparências, não podemos encontrar uma denominação adequada, mas a designamos de acordo com o elemento que nela predomina: chamamos-lhe apetitiva pela violência dos apetites correspondentes ao comer e ao beber, aos prazeres eróticos e tudo mais que diz respeito aos sentidos; e também lhe chamamos avarenta ou ávida de riquezas, por ser sobretudo com estas que se satisfazem tais desejos.

GLÁUCON – E com razão o fizemos.

SÓCRATES – E se disséssemos que os seus prazeres e inclinações se relacionam com o ganho, não teríamos aí uma idéia central e um marco evidente para assinalar essa parte da alma? Não seria acertado, pois, chamar-lhe cobiçosa e desejosa de ganho?

GLÁUCON – Concordo contigo.

SÓCRATES – E o que mais? Não dissemos da parte irascível que tende inteira e constantemente para o mando, a vitória e a fama?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – Não seria, pois, adequado chamar-lhe arrogante e ambiciosa?

GLÁUCON – Muito adequado.

SÓCRATES – Quanto àquela outra parte com que compreendemos, é evidente a todo mundo que toda ela se dirige para o conhecimento da verdade e menos que às outras lhe importam as riquezas ou a fama.

GLÁUCON – Muito menos.

SÓCRATES – “Amante da ciência” ou “do saber” são, pois, as denominações que melhor lhe assentam?

GLÁUCON – Perfeitamente.

SÓCRATES – E não é verdade que na alma de certos homens prevalece este princípio e na de outros algum dos dois restantes, conforme o caso?

GLÁUCON – Assim é.

SÓCRATES – Podemos, pois, pressupor a existência de três classes de homens: o filósofo, o ambicioso e o avaro?

GLÁUCON – De pleno acordo.

SÓCRATES – E que são três as espécies de prazeres, correspondentes a cada um deles?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – Ora, se fores perguntar sucessivamente a cada um desses homens qual de suas vidas respectivas é mais agradável, cada qual exaltará a sua própria e depreciará as dos outros. E o avaro fará ressaltar a vaidade das honras ou do saber em contraste com o ganho, a menos que aqueles possam render dinheiro, não é assim?

GLÁUCON – É verdade.

SÓCRATES – E o que dirá o ambicioso? Não considerará grosseiro o prazer da riqueza, enquanto o do saber não passa, para ele, de fumaça e futilidade se a Ciência não traz honra consigo?

GLÁUCON – Assim é.

SÓCRATES – E havemos de crer que o filósofo dê algum valor aos outros prazeres em comparação com o de conhecer a verdade tal como é em si e de aprender constantemente alguma coisa a esse respeito? Não pensará que estão bem longe do prazer verdadeiro e não lhes chamará com razão prazeres forçosos, significando com isso que os dispensaria de bom grado se não fosse a necessidade?

GLÁUCON – É preciso conhecê-los bem.

SÓCRATES – Já que estão, pois, em discussão os prazeres de cada classe e as respectivas maneiras de viver, não para saber-se qual é a mais decorosa ou ignominiosa, nem a melhor ou pior, porém qual é a mais agradável e isenta de pesares – como poderemos determinar qual desses homens fala a verdade?

GLÁUCON – Eu não saberia dizê-lo.

SÓCRATES – Bem, mas qual deve ser o critério? Haverá algum melhor do que a experiência, o saber e a razão?

GLÁUCON – Como pode haver?

SÓCRATES – Então reflete nisto: dos três indivíduos, qual é o que tem maior experiência de todos os prazeres que enumeramos? Acaso o avaro, no que toca a conhecer a verdade em si mesma, terá mais experiência do prazer de conhecer do que tem o filósofo do prazer do ganho?

GLÁUCON – O filósofo leva aí grande vantagem, pois necessariamente provou todos os outros prazeres desde sua meninice, enquanto o avaro, se por acaso tenta estudar as essências, não é forçoso que saboreie a doçura desse prazer nem que adquira experiência dele. Digo mais: isso não lhe seria nada fácil, ainda que desejasse.

SÓCRATES – Então o filósofo leva grande vantagem ao avaro no que tange à experiência desses dois prazeres?

GLÁUCON – Sim, muito grande.

SÓCRATES – E passando agora ao ambicioso: terá ele menos experiência do prazer das honras que este do prazer de raciocinar?

GLÁUCON – Não, todos três são honrados na medida em que realizam suas aspirações. Tanto o homem rico quanto o valente ou o sábio possuem sua multidão de admiradores, de modo que todos têm experiência do prazer que proporciona o ser honrado pelos demais. Mas o deleite que dá a contemplação do ser, só o filósofo o conhece.

SÓCRATES – Portanto, sua experiência o capacita a julgar melhor que os outros dois?

GLÁUCON – Muito melhor.

SÓCRATES – E será, além disso, o único que tenha essa experiência ajudada pelo entendimento.

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – Por outro lado, o instrumento com que se deve julgar não é próprio do avaro nem do ambicioso, mas unicamente do filósofo.

GLÁUCON – Que instrumento?

SÓCRATES – Não dissemos que era à razão que cabia decidir?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – E a razão é o instrumento próprio do filósofo.

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – Se o critério consistisse na riqueza e no ganho, a aprovação ou reprovação do avaro teria, forçosamente, o máximo valor de prova.

GLÁUCON – Forçosamente.

SÓCRATES – E se fosse preciso julgar com a honra, a vitória e a valentia, não residiria a verdade na opinião do homem ambicioso e arrogante?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – E se é a experiência, ao entendimento e ao raciocínio que compete julgar?

GLÁUCON – Nesse caso, não se pode fugir à conclusão: o maior grau de verdade se encontra na aprovação do filósofo.

SÓCRATES – Chegamos, pois, a este resultado: o prazer da parte inteligente da alma é o mais deleitoso dos três e a vida mais agradável é a do homem em que essa parte governa o resto.

GLÁUCON – Sem dúvida, o homem sábio fala com autoridade quando louva a sua própria existência.

SÓCRATES – E quais serão a vida e o prazer que esse juiz coloca em segundo lugar?

GLÁUCON – Evidentemente, os do homem guerreiro e ambicioso, que estão mais próximos dos seus que os do homem de negócio.

SÓCRATES – E em último lugar vem o avaro?

GLÁUCON – Não se pode julgar de outro modo.

SÓCRATES – (…) Um sábio me sussurra ao ouvido que nenhum prazer é completo nem puro, salvo o do filósofo; todos os demais não passam de sombras. E esta é, para o injusto, a maior e a mais decisiva das quedas.

GLÁUCON – Com efeito; mas como explicas isto?

SÓCRATES – Alcançarei a explicação por meio de perguntas, se tu me responderes.

GLÁUCON – Pergunta, pois.

SÓCRATES – Dize-me: não será a dor o contrário do prazer?

GLÁUCON – Sem dúvida.

SÓCRATES – E, além desses dois, não existe um estado neutro, que é o de quem não sente prazer nem dor?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – Um estado intermediário, uma espécie de repouso da alma entre os dois? Não é isso que dizes?

GLÁUCON – Isso mesmo.

SÓCRATES – E não te lembras do que costumam dizer as pessoas quando estão doentes?

GLÁUCON – Que é?

SÓCRATES – Que não há nada mais doce do que estar são, mas que não sabiam disso antes de adoecer.

GLÁUCON – Lembro-me agora.

SÓCRATES – E, do mesmo modo, ouves dizer aos que acabam de passar por uma dor violenta que não há nada mais delicioso do que a cessação da dor?

GLÁUCON – Ouço, de fato.

SÓCRATES – E não há muitas outras espécies de sofrimento em que o simples descanso e a cessação da dor, e não qualquer gozo positivo, são louvados por eles como o maior dos prazeres?

GLÁUCON – Sim, talvez seja esse descanso o que então lhes parece deleitoso e apetecível.

SÓCRATES – Mas, por outro lado, quando cessa o prazer que sente alguém, essa espécie de descanso ou de cessação lhe será dolorosa?

GLÁUCON – Sim, talvez.

SÓCRATES – Portanto, o estado intermediário de repouso será de certo modo ambas as coisas: prazer e dor.

GLÁUCON – Assim parece.

SÓCRATES – E é possível que, não sendo nenhuma das duas coisas, venha a converter-se numa e na outra?

GLÁUCON – Creio que não.

SÓCRATES – E tanto o prazer como a dor são movimentos da alma, não é verdade?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – Mas acabamos de mostrar que aquilo que não é uma coisa nem outra está em repouso e não em movimento, ocupando uma posição intermediária entre ambas?

GLÁUCON – Mostramos, sim.

SÓCRATES – Como é possível afirmar, então, que a ausência de dor seja prazer, ou vice-versa?

GLÁUCON – Impossível.

SÓCRATES – Portanto, o sossego não é, mas apenas parece ser agradável em face do doloroso, e doloroso em face do agradável; e todas essas impressões nenhuma realidade têm quando aferidas pela essência do prazer, mas constituem uma espécie de impostura?

GLÁUCON – É, pelo menos, o que se conclui do teu raciocínio.

SÓCRATES – Considera a classe de prazeres que não são precedidos de dores, e deixarás de acreditar, como talvez acredites agora, que o prazer consiste na cessação da dor e a dor, na cessação do prazer.

GLÁUCON – Quais são esses e onde os encontrarei?

SÓCRATES – São em grande número. Toma, por exemplo, os prazeres do olfato: estes se produzem de imediato e com extraordinária intensidade, e ao cessarem não deixam dor alguma.

GLÁUCON – Muito certo, isso.

SÓCRATES – Não nos convencerá, pois, essa história de que a cessação da dor é um prazer e a cessação do prazer, uma dor.

GLÁUCON – Não, com efeito.

SÓCRATES – No entanto, os chamados prazeres que chegam à alma pelo caminho do corpo, e que talvez sejam os mais numerosos e violentos, pertencem a esta classe: são alívios da dor.

GLÁUCON – É verdade.

SÓCRATES – E não têm a mesma índole os pressentimentos de futuros prazeres e dores, nascidos da expectativa?

GLÁUCON – A mesma.

SÓCRATES – Queres que te mostre isso por meio de uma imagem?

GLÁUCON – Ouçamos.

SÓCRATES – Admites que existe na natureza uma região superior, uma inferior e uma intermediária?

GLÁUCON – Admito.

SÓCRATES – E se uma pessoa fosse transportada da inferior para a intermediária, não imaginaria que estava subindo ao cume? E quando estiver no meio, contemplando o seu ponto de partida, não suporá que se encontra já nas alturas, se nunca vi a altura verdadeira?

GLÁUCON – Evidentemente. Como poderia pensar de outro modo?

E se fosse levada de novo a esse ponto de partida, não pensaria, desta vez com razão, que a estavam levando para baixo?

GLÁUCON – Pois claro.

SÓCRATES – E tudo isso se deveria à sua ignorância do que é verdadeiramente o alto, o baixo e o intermediário?

GLÁUCON – Sim.

SÓCRATES – Como admirar-se, então, de que aqueles que não conhecem a verdade, além de terem opiniões ilusórias acerca de muitas outras coisas, também encarem de tal modo o prazer, a dor e o que se encontra no meio de ambos que, quando são arrastados à dor, se sintam realmente e com razão doloridos, mas, quando passam da dor ao estado intermediário, convencem-se de ter alcançado a satisfação e o prazer – e, como alguém que, por não conhecer o branco, visse no cinzento o contrário do negro, também eles, por ignorância do prazer, se enganam vendo na ausência de dor o contrário desta?

GLÁUCON – Não me admiro disso, por Zeus! Antes me admiraria se não fosse assim.

SÓCRATES – Atenta agora para esta outra coisa: a fome, a sede e outros estados semelhantes não são como uma espécie de vazios na disposição do corpo?

GLÁUCON – Perfeitamente.

SÓCRATES – E a ignorância e a insensatez não são, por outro lado, vazios e inanições da alma?

GLÁUCON – Por certo.

SÓCRATES – E não encheria esses vazios o que tomasse alimento ou adquirisse inteligência?

GLÁUCON – Como não?

SÓCRATES – E qual é a plenitude mais verdadeira: a do que tem mais realidade ou a do que tem menos?

GLÁUCON – A do que tem mais, é claro.

SÓCRATES – E qual dos dois gêneros de coisas acreditas que participa mais da existência pura: aquelas de que fazem parte o pão, os condimentos, a bebida e os demais alimentos, ou a classe em que se incluem a opinião verdadeira, o conhecimento, a inteligência e as diferentes espécies de virtude? Formulemos a pergunta de outro modo: que é mais real, o que se ocupa com o invariável, o imortal e o verdadeiro, possuindo, ademais, esses mesmos atributos e produzindo-se em algo de sua mesma índole, ou o que se atém ao mortal e variável, sendo assim ele próprio e produzindo-se no que é de sua mesma natureza?

GLÁUCON – É muito superior o que se refere ao invariável.

SÓCRATES – E a essência do que sempre muda terá mais realidade do que a da ciência?

GLÁUCON – De modo algum.

SÓCRATES – E terá mais verdade?

GLÁUCON – Tampouco.

SÓCRATES – E, tendo menos verdade, terá também menos realidade?

GLÁUCON – É forçoso.

SÓCRATES – Assim, pois, de um modo geral, as espécies de coisas que estão a serviço do corpo têm menos verdade e realidade que as atinentes ao serviço da alma?

GLÁUCON – Muito menos.

SÓCRATES – E não crês que o mesmo se possa dizer do próprio corpo em relação à alma?

GLÁUCON – Sim, por certo.

SÓCRATES – Portanto, o que é mais real em si mesmo e está cheio de coisas mais reais está realmente mais cheio do que o cheio de coisas menos reais e que, além disso, é menos real em si mesmo?

GLÁUCON – Naturalmente.

SÓCRATES – De modo que, se o encher-se de coisas congêneres com a natureza proporciona prazer, o que se enche mais realmente e de coisas mais reais gozará de um prazer mais verdadeiro e autêntico; e o que participa de coisas menos reais se encherá de maneira menos real e sólida e gozará um prazer menos seguro e verdadeiro.

GLÁUCON – É indubitável.

SÓCRATES – Por isso, os faltos de inteligência e virtude, que sempre andam ocupados com a glutonaria e a sensualidade, são arrastados alternativamente para baixo e para cima até a metade da subida, e assim passam a vida inteira; sem jamais ultrapassarem esse ponto, não vêem nem alcançam a verdadeira altura, nem se enchem realmente do que é real, nem desfrutam de um prazer puro e duradouro. São como reses que, a olhar sempre para baixo e com a cabeça inclinada para a terra – isto é, para as suas mesas – cevam-se de pasto, engordam, acasalam-se e, no seu amor excessivo desses deleites, escoiceiam-se e marram-se umas às outras com cascos e chifres de ferro, e se matam mutuamente, levadas por sua avidez insaciável, porque não enchem de coisas reais o seu ser real e sua parte apta para conter aquelas.

(PLATÃO. A República, livro IX)

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O pós-moderno reacionário

Sim, o pós-moderno pode ser reacionário.

Para o humanismo pós-moderno de um Heidegger ou de um Sartre, não existe a possibilidade da objetividade – especialmente da objetividade científica. Se cada homem cria o mundo, e o mundo é criação de cada homem, não subsiste a universalidade epistemológica que autoriza o processo objetificante das metodologias. Para os humanistas pós-modernos, cada homem tem sua certeza, e, nessa certeza, possui a verdade. Cada homem tem seus próprios valores (morais e hermenêuticos), e o solipsismo fenomenológico impede que os valores sejam comparados a valores-padrão. A que isto remete? Relativismo absoluto dos valores.

O humanismo pós-moderno é, então, uma posição que, acima de tudo, põe o homem individual – e não algo como a humanidade, ou o homem comum, ou o homem médio, ou o Homem – no centro do processo de valoração e de conhecimento de tudo. Neste sentido, o humanismo pós-moderno de Heidegger e Sartre é bastante diferente do humanismo grego de Sócrates, do humanismo medieval de Agostinho, do humanismo renascentista de Descartes, do humanismo esclarecido de Kant, do humanismo iluminista dos enciclopedistas franceses, do humanismo existencialista primordial de Kierkgaard, do humanismo materialista de Marx, do humanismo teológico de Teilhard de Chardin.

O humanismo pós-moderno é solipsista, é anti-científico. Podemos dizer, inclusive, que é reacionário de um certo ponto de vista: rejeita o sentido do desenvolvimento da humanidade, rejeita a possibilidade de uma busca a um bem objetivo, rejeita a identificação de algo intrinsecamente bom e de sua oposição a algo intrinsecamente mau, mesmo que apenas para que se assumam com estes valores metas para o desenvolvimento da humanidade.

O humanismo pós-moderno é reacionário porque considera o desenvolvimento da ciência algo opressor e maligno – não, contudo, positivamente, mas apenas porque afastaria a possibilidade de um modo de vida supostamente mais livre, mais espontâneo, mais autêntico. É reacionário porque rejeita o progresso político (lembremo-nos do apoio de Heiddeger à ditadura nacional-socialista de Hitler, de Sartre à ditadura comunista de Stálin – regimes brutais, reacionários, anti-libertários). É reacionário porque, em seu solipsismo da anti-racionalidade, não aceita argumentos racionais. É reacionário porque rejeita o senso de realidade que constrói a necessidade da criação de conhecimento e de evolução moral.

Sim, o pós-moderno é um reacionário.

Simulado ENEM – 60 questões com conteúdo de Filosofia

Ofereço aos meus leitores vestibulandos um simulado com 60 questões com conteúdo de Filosofia do ENEM.

Todas as questões foram extraídas de provas do ENEM de 2008 a 2012.

Este simulado é provavelmente a mais completa reunião de questões das últimas provas do ENEM com conteúdo de Filosofia disponível na web.

Desejo uma boa preparação!

Acesse o simulado em PDF aqui:

Simulado Filosofia ENEM – 60 questões

O gabarito está aqui:

GABARITO

 

Confira também:

SIMULADO ENEM – 80 QUESTÕES de Filosofia (2008-2013)

A importância da Filosofia

Ao ter contato pela primeira vez com a Filosofia no ensino médio, muitos jovens fazem a pergunta: “Filosofia para quê?” – e essa pergunta é realmente fundamental. Afinal, para que estudamos Filosofia?

A Filosofia é um dos campos de estudos mais antigos (pois surgiu no século VI a.C.), mas não se resume à discussão das ideias da Antiguidade. Na verdade, a filosofia está mais viva do que nunca: em nenhum tempo houve tantos filósofos produzindo Filosofia inovadora e de qualidade quanto em nossa época.

Deve haver uma boa razão para a Filosofia ser praticada ininterruptamente há vinte e cinco séculos. Nenhuma atividade humana permanece por tanto tempo, a não ser que tenha alguma utilidade na vida das pessoas.

Mas aparentemente a Filosofia não tem utilidade: com ela, não fazemos casas, barcos ou roupas; não produzimos alimentos nem remédios para o corpo; não criamos poemas, não pintamos quadros para nosso deleite.

Então, qual é a utilidade da Filosofia?

A Filosofia é útil para os que querem conhecer a si mesmos e entender de onde surgem as ideias que estão em sua mente; para os que têm interesse em questionar os fundamentos das ciências, da política, da arte, da religião…; para os que têm necessidade de encontrar uma resposta às perguntas: “qual o sentido da vida?”, “qual o sentido do universo?”, “qual o sentido de tudo?”.

E a Filosofia tem respostas para essas questões? Mais do que fornecer respostas prontas, a Filosofia sugere caminhos possíveis e coerentes: caminhos que podem ser seguidos por qualquer um, desde que se disponha a utilizar a sua razão, e que conduzem a uma análise crítica das atitudes e das práticas adotadas em sua própria vida.

Não há momento mais propício para se engajar na prática filosófica do que a juventude. A partir do questionamento e da redefinição do que é realmente importante em sua vida, o jovem pode adquirir maturidade e planejar, com mais clareza, o seu próprio amanhã.

Finalmente, a pergunta: “para que a Filosofia?” tem uma resposta: a Filosofia é o conhecimento mais útil para construir o futuro.

A Escola de Mileto

Os primeiros filósofos eram naturais da cidade de Mileto. Foram chamados por Aristóteles, tempos depois, de “físicos”, porque o problema central com o qual lidavam era a questão da physis. Atualmente, damos aos primeiros filósofos a qualidade de “pré-socráticos”, pois investigam questões diferentes das que passaram a ser abordadas pela filosofia após Sócrates. As mais importantes perguntas que os pré-socráticos faziam eram:

– Como surgiu o cosmos?

– Como a physis é ordenada?

– Quais são os elementos fundamentais da physis, ou seja, qual é o arché?

A resposta apresentada por cada um dos três principais filósofos milesianos foi baseada na idéia de que a physis tinha um arché unitário. Em outras palavras, um único princípio deve ser utilizado para explicar todas as coisas no cosmos.

Grande parte dos textos dos primeiros filósofos milesianos se perdeu no tempo. A maior fonte de conhecimento sobre suas teses vem de filósofos e historiadores posteriores que relataram as posições defendidas pelos filósofos anteriores.

Esses relatos foram chamados doxografia, palavra que deriva de doxa, que significa opinião na língua grega, e graphia, que significa escrita. Então, doxografia de um filósofo é o conjunto de opiniões sobre a filosofia de um determinado filósofo da Antiguidade. A doxografia é a maior (e, muitas vezes, a única) fonte de conhecimento dos filósofos da Escola de Mileto: Tales, Anaximandro e Anaxímenes.

Tales (624-546 a.C.) foi considerado o primeiro de todos os filósofos. Em contraste com as antigas explicações mitológicas, Tales tentou encontra explicações naturalistas para o mundo, sem referência a coisa alguma sobrenatural. Explicou, por exemplo, os terremotos por meio da teoria de que a Terra flutua na água; os terremotos seriam causados pelo encontro da Terra com ondas.

Tales procurava pelo “princípio” de todas as coisas, ou seja, pelo arché. O arché seria aquilo de que todas as coisas seriam compostas, em que todas as coisas subsistem e para que todas as coisas tendem.

Segundo a cosmologia de Tales, a arché seria a água. Todas as coisas seriam compostas por água.

Devido ao fato de ter sido o primeiro pensador a procurar um princípio natural observável (a água) para explicar todas as coisas, muitas vezes Tales é considerado o primeiro cientista.

Contudo, provavelmente o que Tales tinha em mente com a idéia de água não era o mesmo que nós, que pensamos na substância H2O. Provavelmente o que Tales tinha em mente era algo como o elemento líquido, o princípio líquido como a fonte de todas as coisas na natureza.

Este elemento ou princípio líquido, considerado de modo unitário, seria a fonte, o fim e o substrato de todos os seres individuais e múltiplos.

Assim, o princípio líquido universal é aquilo de que todas as coisas surgem, em que todas as coisas existem e para o que todas as coisas se encaminham.

Evidentemente, esta idéia, embora seja naturalista, pois o princípio líquido é parte da natureza, não é materialista. Tales não era um filósofo para quem a única realidade era material; na verdade, a realidade substancial é natural, é una, mas não é material.

Note-se que não-material não significa sobrenatural. Mesmo quando diz que o ímã tem alma, não utiliza aqui um princípio sobrenatural; apenas justifica o movimento do ímã na direção do ferro (ou o contrário) por um princípio natural, o princípio da vida (a alma), pois apenas o que tem vida poderia mover-se autonomamente. Embora não-material, o princípio fundamental é parte da physis.

Neste sentido, podemos também compreender a tese mais conhecida de Anaximandro (610-546 a.C.). Aluno de Tales, professor de Anaxímenes e de Pitágoras, foi o primeiro filósofo a escrever seus estudos, embora apenas um fragmento de seu trabalho ainda exista.

Anaximandro seguiu a mesma linha de Tales e foi além.  Afirmou que a natureza é regida por leis, como as sociedades humanas, e nada que cause distúrbio ao balanço da natureza pode durar muito tempo.

Suas contribuições à filosofia envolvem várias disciplinas. Na astronomia, tentou descrever a mecânica dos corpos celestes em relação à Terra. Também desenhou um mapa do mundo que contribuiu grandemente para o avanço da geografia. Esteve envolvido com a política de Mileto e foi enviado como líder de uma de suas colônias.

Contudo, foi a respeito do princípio fundamental que Anaximandro fez suas mais duradouras contribuições para a filosofia.

Ao contrário de Tales, que propôs que o arché fosse o princípio líquido, ou seja, a água, Anaximandro defendeu que o princípio não era líquido, nem sólido, nem gasoso (mesmo que líquido, sólido ou gasoso fossem tomados como princípios muito gerais e quase metafóricos). Sua proposta foi de que o arché não pode ter limite, determinação nem forma.

Afinal, se o arché tiver forma, todas as coisas criadas dele terão necessariamente a forma do arché. Contudo, se o arché não tiver forma, limite ou determinação, pode vir a se tomar a forma, ter o limite e determinar-se como qualquer outra coisa.

Anaximandro deu a esse arché indefinido, indeterminado e ilimitado o nome ápeiron. O ápeiron está presente em todos os lugares; assim como o líquido para Tales, é do ápeiron que tudo surgiu, é no ápeiron que tudo existe e para o apeíron tudo segue – o ápeiron é o início, o meio e o fim.

Aqui torna-se evidente que estamos diante de algo novo: o ápeiron é um princípio natural que nos lembra a idéia de Deus – num momento em que ninguém ainda havia pensado em Deus desse modo.

Mesmo a primeira religião monoteísta, o judaísmo, não tinha ainda naquela época adotado de modo inequívoco a concepção da tradição sacerdotal hebraica de um Deus universal, onisciente, onipresente e onipotente, a concepção que ficaria consagrada após alguns séculos.

Em outras palavras, a concepção racional e naturalista de Anaximandro a respeito do arché precedeu e, possivelmente, influenciou a concepção de Deus que se teria posteriormente na Grécia, no judaísmo e no cristianismo. Estamos diante de uma concepção naturalista de Deus – um Deus desumanizado, desantropomorfizado, universal, fonte, fim e substrato de todos os seres; em suma, estamos diante da primeira concepção de um Ser que puramente É – conceito que a Escola Eleata desenvolveu mais profundamente ainda nos primórdios da filosofia grega.

Anaxímenes (585-525 a.C.) foi aluno de Anaximandro. Suas idéias são próximas à dos dois outros milesianos, mas, em lugar do princípio líquido ou do ápeiron, era o ar a ser tomado como arché.

Esta idéia parece, à primeira vista, um retrocesso de um princípio bastante complexo, como o ápeiron, de volta a um princípio material (como aparentemente é a água). Contudo, assim como a água a que Tales faz referência não é o que nós chamamos comumente água, o que Anaxímenes chama ar não é o que nós chamamos ar. Anaxímenes não se referia à mistura química gasosa entre o oxigênio, o nitrogênio e o gás carbônico: o ar, para os gregos, era considerado algo infinito que preenche todos os lugares em todo o cosmos.

Além disso, tanto para os gregos quanto para talvez todas as civilizações da Antiguidade, o ar, o sopro, o hálito, era considerado o princípio vital. Isso parece evidente: a respiração, ou a falta dela, indica se um ser vivo vive ou morre; quando um bebê nasce, precisa começar a respirar; a morte vem frequentemente acompanhada de um último suspiro; e é muito comum na religiosidade antiga que a vida seja dada pela divindade com um sopro vital (“Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”; Gn 2,7); na própria tradição judaica e cristã, Deus é às vezes visto como uma brisa ou um vento suave (“e depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo o murmúrio de uma brisa suave. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta”; I Reis 19,12-13).

Isso significa que também Anaxímenes propõe um princípio natural que não é, a despeito do que possa parecer à primeira vista, material. Pode-se dizer que este princípio, assim como o proposto por Tales, tem uma manifestação material – mas o princípio uno e universal não o é. Ainda assim, é um princípio físico, ou imanente.Ou seja: ainda que possamos fazer referência a um “sopro divino” na tese de Anaxímenes, esse “divino” é constitutivo da physis na própria physis. Em outras palavras, o divino, para Anaxímenes, é natural.

Do mito ao pensamento racional – por François Châtelet

A história moderna da filosofia da Antiguidade restabelece uma ordem intelectualmente satisfatória para aqueles que a elaboram. No princípio, há, a religião, o mito, a poesia; de Homero a Píndaro (e, passando por um desvio, até os autores clássicos da tragédia); em seguida, uma transição: os “pré-socráticos”. No mesmo “saco” são metidos os “físicos” – Tales, por exemplo –, os atomistas, os médicos, os historiadores, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, os sofistas. Surge então Sócrates: tudo mda, mas de uma maneira que não é ainda radical. Com Platão, com a fundação da Academia, em 387, é instituída finalmente a ordem da racionalidade; precária, inábil, essa ordem, que estará sujeita a múltiplas modificações, determinou já seus princípios. Ao pensamento que obedece à exigência lendária, substitui-se uma nova lógica regulando, graças a uma estrita disciplina do discurso, a questão do direito à palavra verdadeira, isto é, eficaz.

Uma semelhante leitura é boa. É incontestável que a concepção grega do homem e do mundo se “secularizou” ou “laicizou” progressivamente e que o universo dos deuses desapareceu pouco a pouco face às ações dos homens. Enquanto nos séculos que se convencionou chamar homéricos a narração se organiza em torno dos personagens divinos, os personagens humanos sendo reduzidos eles próprios a essências com o estatuto da quase-dependência, na época clássica – no século V – o homem, como cidadão-guerreiro, que fala e que combate, aparece como assumindo o seu destino. Nesta época os gêneros culturais mudam de sentido e estilo: a tragédia, antes fundamentalmente religiosa, torna-se cerimônia cívica; a comédia passa do jogo burlesco à crítica política; outros se afirmam como a história-geografia: descrições lendárias e genealogias místicas dão lugar a paisagens e costumes analisados e descritos com precisão, a seqüências de acontecimentos narradas escrupulosamente; outros nascem como uma medicina que, doravante, faz apelo antes à investigação das causas das enfermidades que aos recursos ambíguos da adivinhação; como a “física”, que passa pouco a pouco das especulações mágicas ao estudo das relações fenomenais; como a arte da palavra, que deixa de ser o apanágio das famílias nobres para se tornar o meio do qual todo cidadão dispõe, pelo menos em direito, para fazer valer suas opiniões e interesses; como a “filosofia”, que deixa de ser declaração exaltante e misteriosa para reivindicar, com a mestria com que domina o jogo das questões e respostas, seu direito a definir em todos os domínios a jurisdição suprema.

Em suma, para falar como Condorcet, o progresso vai bem. Lentamente, as “luzes” se instalam. O lugar onde esta mutação se opera é a Polis, a Cidade. Esta se forma nas cidades coloniais, particularmente da Ásia Menor; chega então à metrópole e Atenas será o lugar de uma evolução tida posteriormente por exemplar. O esquema de evolução é, consequentemente, satisfatório: a conquista política do estatuto cívico – da ordem da cidadania, na qual o destino de cada um é definido não pela proximidade aos deuses, nem por pertencer a uma família, nem pela obrigação de lealdade a um chefe, mas pela relação ao princípio abstrato que é a lei – constitui uma primeira etapa. A instauração da democracia que se efetua, por causas históricas localizáveis, em Atenas, é o segundo momento. Uma democracia não é apenas, como sua etimologia indica, o poder do “povinho”, é antes o regime no qual o governo está “no meio”, quando cada cidadão está de direito e de fato capacitado a participar dele. Uma organização racional, correspondendo ao lugar do homem na disposição cósmica, se opõe às desordens dos bárbaros longínquos, à ordem absurda dos bárbaros demasiado próximos – o Império Persa. Subministra-se aí um pensamento novo, que rejeita nos horizontes distantes do arcaísmo o excessivo interesse pelos deuses e, em conseqüência, marca o exclusivo interesse pelos homens.

(CHÂTELET, François. História da Filosofia: Idéias, Doutrinas, vol. 1)

Os filósofos pré-socráticos – por Gerd Bornheim

O surto da Filosofia só pode ser compreendido através de certas características muito peculiares à religião grega. Não se trata de afirmar que a Religião tenha sido a causa da instauração da Filosofia; também não se trata tão-só de reconhecer a coincidência de certos conteúdos. O problema consiste muito mais em compreender como estes conteúdos foram transferidos de um contexto mítico para o domínio da pergunta racional. Quando Tales afirma que a água é o elemento primordial de todas as coisas, há nisto uma clara ressonância do mito homérico, que mergulha por sua vez nas mais primitivas crenças religiosas. Mas tal ressonância não autoriza a dizer que a afirmação do mundo natural implica a recusa de uma realidade sobrenatural. Sem dúvida, as colônias em que se desenvolveu a filosofia pré-socrática não se caracterizavam pela intensa religiosidade da Grécia peninsular – que se extasiava, na mesma época, com a tragédia. Não é, contudo, a falta de religiosidade que explica o surto da Filosofia. Trata-se muito mais de outro tipo de religiosidade, que obrigava o homem das colônias a viver mais por si mesmo e a desenvolver uma certa ousadia intelectual. O itinerário do pensamento pré-socrático não se desdobra do “mito ao logos”, mas de um logos mítico para a conquista de um logos mais acentuadamente noético.

Por outro lado, se quisermos explicar tal ousadia devemos atentar a um rasgo fundamental da religiosidade grega: o homem grego não compreende os seus deuses como pertencentes a um mundo sobrenatural; deparamos com uma religião que desconhece o dogma ou qualquer tipo de verdade que não encontre os seus fundamentos na própria ordem natural. Os deuses gregos apresentam-se com uma evidência que os prende à ordem natural das coisas. Não existe o exclusivismo do Deus hebraico ou muçulmano, que só reconhece o homem quando este se converte. Longe de se limitarem a uma igreja ou aos privilégios de um povo escolhido, os deuses gregos são reconhecidos em sua presença puramente natural na ordem do mundo. E é esta presença natural que empresta aos deuses gregos uma universalidade ímpar. Os deuses existem assim como existem as plantas, as pedras, o amor, os homens, o riso, o choro, a justiça.

A partir de tais pressupostos religiosos compreende-se que aos poucos uma atitude filosófica diante do real se tornasse viável, que o homem passasse a afirmar-se como um ser que por suas próprias forças questiona o real. Claro que a autonomia da pergunta filosófica só pode surgir ao cabo de um longo itinerário. Se em Homero o poeta se esconde, anônimo, atrás dos feitos dos deuses e dos heróis, já Hesíodo se apresenta como homem, e quase que constrói a seu modo uma teogonia. Desta forma, a atividade racional do homem se afirma com uma intensidade crescente, até atingir, ao tempo dos pré-socráticos, o seu primeiro momento de maturidade. Burnet chama a atenção para o fato de que os primeiros filósofos usam até mesmo a palavra deus em um sentido não-religioso. Se o pensamento filosófico é em certa medida condicionado pela Religião, esta passa a sofrer o impacto da Filosofia.

(BORNHEIM, Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos)