A história moderna da filosofia da Antiguidade restabelece uma ordem intelectualmente satisfatória para aqueles que a elaboram. No princípio, há, a religião, o mito, a poesia; de Homero a Píndaro (e, passando por um desvio, até os autores clássicos da tragédia); em seguida, uma transição: os “pré-socráticos”. No mesmo “saco” são metidos os “físicos” – Tales, por exemplo –, os atomistas, os médicos, os historiadores, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, os sofistas. Surge então Sócrates: tudo mda, mas de uma maneira que não é ainda radical. Com Platão, com a fundação da Academia, em 387, é instituída finalmente a ordem da racionalidade; precária, inábil, essa ordem, que estará sujeita a múltiplas modificações, determinou já seus princípios. Ao pensamento que obedece à exigência lendária, substitui-se uma nova lógica regulando, graças a uma estrita disciplina do discurso, a questão do direito à palavra verdadeira, isto é, eficaz.
Uma semelhante leitura é boa. É incontestável que a concepção grega do homem e do mundo se “secularizou” ou “laicizou” progressivamente e que o universo dos deuses desapareceu pouco a pouco face às ações dos homens. Enquanto nos séculos que se convencionou chamar homéricos a narração se organiza em torno dos personagens divinos, os personagens humanos sendo reduzidos eles próprios a essências com o estatuto da quase-dependência, na época clássica – no século V – o homem, como cidadão-guerreiro, que fala e que combate, aparece como assumindo o seu destino. Nesta época os gêneros culturais mudam de sentido e estilo: a tragédia, antes fundamentalmente religiosa, torna-se cerimônia cívica; a comédia passa do jogo burlesco à crítica política; outros se afirmam como a história-geografia: descrições lendárias e genealogias místicas dão lugar a paisagens e costumes analisados e descritos com precisão, a seqüências de acontecimentos narradas escrupulosamente; outros nascem como uma medicina que, doravante, faz apelo antes à investigação das causas das enfermidades que aos recursos ambíguos da adivinhação; como a “física”, que passa pouco a pouco das especulações mágicas ao estudo das relações fenomenais; como a arte da palavra, que deixa de ser o apanágio das famílias nobres para se tornar o meio do qual todo cidadão dispõe, pelo menos em direito, para fazer valer suas opiniões e interesses; como a “filosofia”, que deixa de ser declaração exaltante e misteriosa para reivindicar, com a mestria com que domina o jogo das questões e respostas, seu direito a definir em todos os domínios a jurisdição suprema.
Em suma, para falar como Condorcet, o progresso vai bem. Lentamente, as “luzes” se instalam. O lugar onde esta mutação se opera é a Polis, a Cidade. Esta se forma nas cidades coloniais, particularmente da Ásia Menor; chega então à metrópole e Atenas será o lugar de uma evolução tida posteriormente por exemplar. O esquema de evolução é, consequentemente, satisfatório: a conquista política do estatuto cívico – da ordem da cidadania, na qual o destino de cada um é definido não pela proximidade aos deuses, nem por pertencer a uma família, nem pela obrigação de lealdade a um chefe, mas pela relação ao princípio abstrato que é a lei – constitui uma primeira etapa. A instauração da democracia que se efetua, por causas históricas localizáveis, em Atenas, é o segundo momento. Uma democracia não é apenas, como sua etimologia indica, o poder do “povinho”, é antes o regime no qual o governo está “no meio”, quando cada cidadão está de direito e de fato capacitado a participar dele. Uma organização racional, correspondendo ao lugar do homem na disposição cósmica, se opõe às desordens dos bárbaros longínquos, à ordem absurda dos bárbaros demasiado próximos – o Império Persa. Subministra-se aí um pensamento novo, que rejeita nos horizontes distantes do arcaísmo o excessivo interesse pelos deuses e, em conseqüência, marca o exclusivo interesse pelos homens.
(CHÂTELET, François. História da Filosofia: Idéias, Doutrinas, vol. 1)
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