Não é fácil traçar a fronteira temporal do momento em que surge o pensamento racional. Passaria, provavelmente, pela epopéia homérica. No entanto, nela é tão estreita a interpenetração do elemento racional e do “pensamento mítico”, que mal se pode separá-los. Uma análise da epopéia, a partir deste ponto de vista, nos mostraria quão cedo o pensamento racional se infiltra no mito e começa a influenciá-lo. A filosofia jônica da natureza sucede à epopéia sem solução de continuidade.
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[P]oderíamos dizer que a intuição mítica, sem o elemento formador do Logos, ainda é “cega” e que a conceituação lógica, sem o núcleo vivo da “intuição mítica” originária, permanece “vazia”. A partir deste ponto de vista devemos encarar a história da filosofia grega como o processo de racionalização progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos.
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O ponto de partida dos pensadores naturalistas do séc. VI era o problema da origem, a physis, que deu nome ao movimento espiritual e à forma de especulação que originou. Isto se justifica, se temos presente o significado originário da palavra grega e não misturamos a ele a moderna concepção da física. O seu interesse fundamental era, na realidade, o que na nossa linguagem corrente denominamos metafísica. Era a ele que se subordinavam o conhecimento e a observação física. É certo que foi do mesmo movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a princípio estava envolta em especulação metafísica, e só gradualmente se foi libertando dela. No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe atualmente. Era natural que a tendência inata dos Jônios – grandes exploradores e observadores – para a investigação levasse as questões a um maior aprofundamento, onde aparecem os problemas últimos. É natural também que, uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo, se desenvolvesse progressivamente a necessidade de ampliar o conhecimento dos fatos e a explicação dos fenômenos particulares. Pela proximidade do Egito e dos países do Oriente Próximo torna-se mais que verossímil – confirmam-no as tradições mais autênticas – que o contato espiritual dos Jônios com as mais antigas civilizações daqueles povos não só tenha levado à adoção das conquistas técnicas na agrimensura, na náutica e na observação do céu, mas tenha também dirigido a atenção daquela raça de navegadores e comerciantes, de espírito vivo, para a consideração dos problemas profundos que aqueles povos resolveram de maneira muito diferente dos Gregos, por meio de mitos referentes ao nascimento do mundo e às histórias dos deuses.
Há, porém, algo de fundamentalmente novo na maneira como os gregos puseram a serviço do seu problema último – da origem e essência das coisas – as observações empíricas que receberam do Oriente e enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação das realidades aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É neste momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, aliás, o feito histórico da Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos mitos. Porém, o simples fato de ter sido um movimento espiritual unitário, conduzido por uma série de personalidades independentes, mas em íntima e recíproca ligação, já demonstra o seu caráter científico e racional. A conexão do nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jônica, torna-se clara, se notarmos que os seus três primeiros pensadores – Tales, Anaximandro e Anaxímenes – viveram no tempo da destruição de Mileto pelos Persas (início do século V). […] O modo de propor e resolver os problemas segue, nos três, a mesma direção. Abriram o caminho e forneceram os conceitos fundamentais à física grega de Demócrito até Aristóteles.
(JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Pp. 191-197)
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