O que é a filosofia? – Minha resposta

O SENTIDO DA FILOSOFIA

Os pré-socráticos escreviam em verso. Comecemos, como eles, declamando um poema:

O MISTÉRIO DAS COUSAS
Alberto Caeiro

Há Metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber o que não sabem?
“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo” …
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas,
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De que, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

* * * * * *

O sentimento que Pessoa transmite por intermédio de Alberto Caeiro é – olhe que interessante! – o sentimento inicial da própria filosofia: o não acreditar simplesmente em idéias – em “filosofias” – mas nas coisas mesmas.

Este poema, aparentemente um libelo “contra” a filosofia, é um dos maiores elogios à filosofia que Pessoa fez. É um elogio porque, ao recusar a Filosofia, se torna uma peça filosófica à altura dos escritos primordiais dos pré-socráticos.

O poema de Caeiro é um elogio à filosofia porque, paradoxalmente, a recusa à filosofia (à filosofia livresca, à filosofia sábia, à filosofia erudita, acadêmica, letrada) é característica essencial da filosofia.

O que é, então, a filosofia? É pertinente começar compreendendo o que os gregos compreendiam, originalmente, por filosofia.

A palavra filosofia é composta das palavras gregas philia, que significa amor, e sophia, que significa sabedoria. Contudo, não é qualquer amor, não é qualquer sabedoria.

Há mais de uma palavra grega que designa amor. Há, além do amor filia, o amor ágape, o amor storge, o amor eros.

Ágape é a palavra usada pelo grego moderno para denotar amor. “Eu te amo”, em grego, se diz s’agapo. Em grego antigo, contudo, ágape se refere, geralmente, a uma afeição, a uma preocupação. É o termo usado, no Novo Testamento, para designar a relação entre Jesus e João, o discípulo que Jesus amou. É ainda o termo com o qual Jesus pergunta três vezes a Pedro, em Jo 21,16: “Pedro, tu me amas?”, ao que Pedro responde três vezes usando não o termo ágape, mas o termo filia: “Senhor, sabes que eu te amo”.

Storge significa, em grego moderno, a afeição natural que se sente por pais ou por filhos. Raramente a palavra storge foi usada em textos antigos, e, quando foi, quase exclusivamente como descrição das relações intrafamiliares.

O amor eros, como é evidente, é aquele amor que hoje chamaríamos erótico. Eros é o amor apaixonado, o amor sensual. A palavra grega moderna erotas significa “amor romântico”. Platão refinou a definição de eros. Embora o amor eros seja, a princípio, sentido por uma pessoa, por meio da contemplação se torna uma apreciação da beleza dentro da pessoa amada, ou mesmo se torna a apreciação da beleza em si. Platão não considerava a atração física um componente necessário do amor eros, e daí advém o termo “amor platônico” quando se quer falar de um amor no qual o componente sensual não é importante. Os amantes e os filósofos são inspirados a buscar a verdade por meio do eros. O amor eros é o assunto do Banquete de Platão.Philia significa, em grego moderno, um amor virtuoso, o que é um conceito desenvolvido por Aristóteles. Inclui lealdade aos amigos, família e comunidade, e requer virtude, equalidade e familiaridade. Nos textos antigos, philia denotava o tipo de amor que existia entre os membros da família e entre os
amigos, um desejo ou apreciação de uma atividade, assim como o amor entre amantes.

Por seu lado, sophia também não é a única palavra grega que designa sabedoria ou conhecimento. Além dela, também episteme, technê e phronêsis designam idéias aproximadas.

Episteme e technê designam conhecimento, mas o conhecimento que designam são de espécies diferentes, ao menos a partir da acepção de Aristóteles.

Enquanto episteme é um conceito que designa “conhecimento teórico”, technê designa “conhecimento prático”, ou “arte”, ou “técnica”. Por exemplo: a física, a química, a matemática ou a biologia seriam exemplos de “conhecimento epistêmico”, enquanto a medicina, a engenharia, a ourivesaria e a olaria seriam exemplos de “conhecimento técnico”.

Sophia, por sua vez, designa, mais do que um “conhecimento teórico” ou “prático”, uma “sabedoria de vida”. Contudo, a sabedoria referida pelo termo sophia não é uma sabedoria prática, mas teórica. Sophia é a capacidade de dirigir a sabedoria intelectual virtuosamente – em contraste com phronésis, que é a sabedoria prática, a prudência, a aplicação do julgamento correto à conduta humana.Finalmente, podemos dizer a que espécie de amor e a que espécie de conhecimento a filosofia se refere, pelo menos quando tratamos da filosofia como era compreendida pelos gregos após Aristóteles.Filosofia é o amor virtuoso – o amor que se dedica aos amigos e à família, o amor que é o prazer e o desejo em praticar uma atividade – pela sabedoria teórica aplicada à vida do homem.

Em meio à imensa variedade de definições dadas por vários filósofos, por várias escolas, por várias correntes, pretendemos manter a que encontramos por meio da compreensão dos termos gregos que constituem a palavra philosophia.

Como se compreende a partir da definição da filosofia, ela é um desejo de sabedoria. Mas esse desejo não pode ser confundido com a sabedoria mesma.

Aliás, a filosofia é uma espécie de “sabedoria” que não é, de fato, uma sabedoria; uma espécie de “conhecimento” que não é, de fato, um conhecimento.

A filosofia não é uma sabedoria, não é um conhecimento, porque o caráter essencial da filosofia não se encerra no ato de conhecer ou de saber, mas no ato de interrogar. A filosofia não é um resultado, não é uma resposta: a filosofia é o próprio problema, é a própria questão.

Se a filosofia é um desejo de sabedoria, podemos dizer que, ao saciarmos o desejo, cessa a filosofia. O filósofo nunca é um sábio, o filósofo não é um cientista, não é um místico; do mesmo modo, o cientista, o místico e o sábio não são filósofos, não ao menos enquanto se mantêm na solidez do conhecimento consolidado.

Platão, no Banquete, faz Sócrates apresentar uma definição de amor que serve perfeitamente à espécie de relação amorosa que pretendemos compreender com o termo filosofia.

Em certa passagem do Banquete, o amor é apresentado como um desejo do ser amado – o amor é o desejo da posse do objeto, da pessoa, da idéia que se ama. Se o amor é o desejo da posse, então o amor é a falta daquilo que se ama, pois, quando se possui a coisa, não mais se a deseja. O amor o sentimento de vazio causado pela ausência, pela falta, do amado.

Se a filosofia é o amor pela sabedoria, então a filosofia não é sábia – pelo contrário: a filosofia tem falta de sabedoria. Ou melhor: a filosofia é o desejo de possuir a sabedoria que não se tem e que se reconhece não se ter. O filósofo, portanto, não é um sábio, senão um amante. O filósofo é aquele que reconhece não ser sábio, mas deseja saber. E o filósofo somente é filósofo enquanto mantém-se um amante, somente é filósofo enquanto reconhece que não sabe. No momento em que o filósofo diz: “Eu sei!”, deixa de sê-lo. Passa a ser cientista, passa a ser sábio, passa a ser místico – mas não é mais filósofo. O filósofo vive na pergunta, mas morre na resposta.

A filosofia não é sábia – mas, paradoxalmente, esta ausência voluntária da sabedoria reflete uma sabedoria diferente, aberta, irônica, ilimitada. A recusa voluntária da sabedoria é, em si mesma, também uma sabedoria, só que mais profunda. Mais profunda porque não se deixa aprisionar por aparências, por pré-conceitos, por idéias, mas tem coragem de duvidar de tudo, e até – ou principalmente – de si mesma. A sabedoria da filosofia é a sabedoria que duvida de si mesma.

É por isso que o Oráculo de Delfos declara que Sócrates é o mais sábio dos homens – e é o mais sábio justamente por não ser sábio, embora deseje sê-lo. Sócrates deseja ardentemente saber, conhecer, compreender; seu desejo, contudo, é tão intenso que determina sua impossibilidade de ser satisfeito. Os especialistas consultados por Sócrates na busca pela verdade estão satisfeitos com seus conhecimentos; mas Sócrates vê e faz ver que eles não compreendem o que dizem e ensinam – e, portanto, que Sócrates é mais sábio, pois pelo menos sabe que não é sábio, enquanto os sábios se enganam e enganam aos outros.

Se depreende daí que a filosofia é definida pelo desejo de algo que não possui – a sabedoria. Agora, finalmente, devemos retomar a “sabedoria” denotada pela palavra sophia. Como vimos, sophia é a sabedoria teórica aplicada à vida cotidiana. Novamente aí não há espaço para um saber livresco ou para um saber místico.

A filosofia não é um conjunto de “idéias puras” cujo propósito seria apenas fornecer um prazer contemplativo ou um discurso puramente teórico – embora não seja, de modo algum, uma prática sem fundamentação teórica – afinal, a filosofia não é uma phronesophia.

Ela é uma maneira de viver, mas não uma maneira desligada do discurso: na filosofia, a pratica é intimamente vinculada ao discurso, e o discurso filosófico necessariamente remete a uma prática.

Se for, finalmente, necessário oferecer uma definição para a filosofia, poderíamos dizer, seguindo uma inspiração aristotélica, que a filosofia é a busca teórica pela realização do desejo de pensar e agir bem – uma busca que, desde o princípio, se coloca como investigação a respeito do sentido da própria busca.

O que se coloca como problema, e que todas as correntes e teorias filosóficas tentarão solucionar, é: o que significa pensar e agir bem? Como podemos investigar sobre o melhor pensamento e a melhor ação para que possamos pensar melhor e agir melhor? É este o grande problema filosófico. E todo o sistema filosófico não é outra coisa senão a tentativa de conciliar o sentimento mais profundo, simples e indizível – sentimento que é a resposta do filósofo ao problema de como pensar e agir bem e ao problema do significado disso – em termos compreensíveis.

Voltamos ao poema de Alberto Caeiro. A filosofia não é uma sabedoria, não é uma erudição. A filosofia é um modo de viver. Por muito tempo evitamos o clichê “filosofia de vida”; contudo, desde que saibamos exatamente o que isso quer dizer, não mais temos medo de falar que, em certo sentido, toda filosofia é uma filosofia de vida.

Se não é uma filosofia de vida, é uma filosofia acadêmica. A filosofia, então, é uma filosofia morta.

 * * *

Clique no link para baixar o texto O Sentido da Filosofia.

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